A simplicidade de Zé Lins
Nasci em Pilar, colhendo cajás das cajazeiras, na estrada oitão do Engenho Corredor, por onde se passava a caminho de São Miguel do Taipu, que sedia outro grande engenho. Pilar sempre foi terra fantasiosa de histórias pra menino, algumas delas, e por isso as mais pedidas, de assombração. Dentre elas, estava também o mundo encantador de Lins do Rêgo, como a da negra Luduvina, que perdera o filho por não entregar o fumo prometido a “Comadre Fulozinha”. Tudo isso ele registrou na memória, o que serviria para escrever depois, dando novos nomes ou não aos seus protagonistas. Ele deve ter lido muitos romancistas e poetas europeus, mas nenhum deles chegou a influenciá-lo como as coisas apanhadas na linguagem popular, nas falas das ruas, nas conversas do eito do engenho, nas colheitas de cana, nas expressões e cantos da moenda. Dessa simples riqueza, originou-se o estilo do escritor, que revolucionou, com uma bela sequência de romances, a literatura brasileira, notadamente a nordestina, num estilo muito pessoal, com abundante matéria prima para a “sociologia do banguê”, mas, sobretudo para seus autênticos romances dos canaviais ou da cultura nordestina. A educação acadêmica de José Lins muito lhe serviu para termos de comparação com a sua formação nos engenhos da família, e para ser fiel ao aprendizado dessa segunda, o que se revela em todos os seus livros, obra plena de simplicidade.
Entre nós, as assombrações tinham lugar certo: na mata depois do rio ou na mata do Pirauá. Se alguma aparecesse no nosso quintal ou no sítio, teria vindo de lá, da mata, para lá voltar; coisas que só aconteciam à noite, na escuridão das grandes árvores, da mata, só iluminada pelos vagalumes ou pela “caipora do mato”. Eram histórias contadas, pelas mulheres mais velhas, sempre antes de dormir e de o motor desligar a luz elétrica. Assombravam, mas nos adormeciam. Foi nesse mundo que Zé Lins adquiriu, vivenciando-o, o palavreado dos canaviais, os termos afrodescendentes, do engenho e das noites sem trabalho da gente da moenda ou da casa de farinha.
Teve infância e adolescência livres para isso, onde e quando nasceu, exatamente em 03 de junho de 1901, no Engenho Corredor, no Município de Pilar, como não só descendente de família de senhores de engenho, mas, de corpo e alma, filho do próprio engenho, meio que lhe pariu uma simplicidade atrevida, facilitando a sua fala, nunca dificultada, posteriormente pela academia ou pela literatura, romances e poesias europeias, que tanto lera.
Com as tias e na escola, José Lins aprendeu a língua da casa grande; com os moleques, companheiros de banho, no rio, nas cacimbas, nos açudes e nas brincadeiras dos esconderijos nos canaviais, o idioma da senzala. Órfão aos quatro anos, passou à responsabilidade do avô, Coronel José Lins, mas, praticamente aos cuidados das tias Maria e Naninha, com quem aprendeu as primeiras letras, as quais relatavam, tim-tim por tim-tim, da vida do menino. Uns davam a fama de Zé Lins ser uma criança triste e taciturna. Isso, somente quando era acometido por esporádica crise asmática. Curado, de repente voltava a ser o peralta extrovertido e bem comunicativo, no meio dos amigos, em que se distinguia pela sua inteligência. Diga-se de passagem, do seu meio aristocrático, sobretudo com primos e primas, nada havia que contrariasse a sua simplicidade.
Emotivo e voluntarioso. Emotivo, quando chegou a discutir e brigar corpo a corpo com político de Manhuaçu; quando, no Maracanã, xingava o juiz de futebol, torcendo pelo seu Flamengo. Comenta-se que, mesmo o Flamengo ganhando de 5X2, já nos minutos finais, Zé Lins ruía as unhas, temendo reviravolta do placar: - “Vai dar tempo para empatar?” Voluntarioso, quando fugiu do internato da Escola do Professor Maciel, em Itabaiana; pegou o trem e desceu em Pilar, para voltar à tão desejada vida do engenho. Também birrento, ao se negar, descaradamente, às senhoras da cidade e ao avô, saudar o arcebispo Dom Adauto, quando o reverendíssimo fazia “visita episcopal” à Paróquia do Pilar. Desapontou a todos, sobretudo, o avô que tinha muito investido nos seus estudos, na Faculdade de Direito do Recife, para que ele se capacitasse a fazer discursos, como aqueles de Rui Barbosa, Castro Pinto ou Epitácio Pessoa. A todos, simplesmente, Zé Lins disse não, indo deitar-se numa rede do alpendre do Engenho para ler jornais da Parahyba e do Recife.
Otto Maria Carpeaux chegou a afirmar que Zé Lins é “o maior contador de histórias desta banda da América”, o que me lembra Gabriel Garcia Marquez, de Cem Anos de Solidão. E meu tio José Augusto de Brito nos falava e escreveu que Zé Lins, mesmo quase adulto, pedia às negras contadoras de história, como era o caso da velha Totonha, para contarem história, e assim, aprendia a simplicidade e fascinante brevidade de expressão, o que caracteriza seus escritos. O “esto brevis et placebis” (sê breve e agradarás) parece ser extensivo tanto à retórica, quanto a quem escreve. Ao que aplico à brevidade “zéliniana” nas suas fenomenais sentenças, com gosto popular, fina ironia e esplêndida clareza. Por isso, Zé Lins não tolerava textos enfadonhos, construídos com palavras rebuscadas.
O tio José Augusto, casado com a amada Emília, irmã do meu pai Inácio, e ex-prefeito de Pilar, era também um contador de história, amigo de personagens de Zé Lins, bem conhecido de Papa-rabo, narrava suas histórias e também, com perfeição, as contadas por José Lins. Das suas narrações, duas se fixaram na minha memória: a da visita do Imperador Dom Pedro II a Pilar, todos os transtornos, a simplicidade do Imperador, usando rede, tamborete e cavalo, como também conversando com povo, a despeito dos integrantes da Corte. E a outra foi sobre o mundo de Zé Lins, ao descrever, com todos os detalhes, seus banhos nas águas do Rio Paraíba; os lances das lavadeiras, de cócoras, à beira das cacimbas; suas filhas, aos olhos do Menino de Engenho, dando bundacanastras, com alguns moleques, da pedra mais alta, que ficava à margem da correnteza. O seu narrar era repetição de Menino do Engenho, autenticamente José Lins do Rêgo. Li todos os romances do meu conterrâneo, a sentença que memorizei, como a mais cheia de riqueza e brevidade, escrita por ele, foi aquela para definir os limites do latifúndio do avô: “O sol, que nasce no Santa Rosa, morre no Santa Rosa”.
Nasci em Pilar, colhendo cajás das cajazeiras, na estrada oitão do Engenho Corredor, por onde se passava a caminho de São Miguel do Taipu, que sedia outro grande engenho. Pilar sempre foi terra fantasiosa de histórias pra menino, algumas delas, e por isso as mais pedidas, de assombração. Dentre elas, estava também o mundo encantador de Lins do Rêgo, como a da negra Luduvina, que perdera o filho por não entregar o fumo prometido a “Comadre Fulozinha”. Tudo isso ele registrou na memória, o que serviria para escrever depois, dando novos nomes ou não aos seus protagonistas. Ele deve ter lido muitos romancistas e poetas europeus, mas nenhum deles chegou a influenciá-lo como as coisas apanhadas na linguagem popular, nas falas das ruas, nas conversas do eito do engenho, nas colheitas de cana, nas expressões e cantos da moenda. Dessa simples riqueza, originou-se o estilo do escritor, que revolucionou, com uma bela sequência de romances, a literatura brasileira, notadamente a nordestina, num estilo muito pessoal, com abundante matéria prima para a “sociologia do banguê”, mas, sobretudo para seus autênticos romances dos canaviais ou da cultura nordestina. A educação acadêmica de José Lins muito lhe serviu para termos de comparação com a sua formação nos engenhos da família, e para ser fiel ao aprendizado dessa segunda, o que se revela em todos os seus livros, obra plena de simplicidade.
Entre nós, as assombrações tinham lugar certo: na mata depois do rio ou na mata do Pirauá. Se alguma aparecesse no nosso quintal ou no sítio, teria vindo de lá, da mata, para lá voltar; coisas que só aconteciam à noite, na escuridão das grandes árvores, da mata, só iluminada pelos vagalumes ou pela “caipora do mato”. Eram histórias contadas, pelas mulheres mais velhas, sempre antes de dormir e de o motor desligar a luz elétrica. Assombravam, mas nos adormeciam. Foi nesse mundo que Zé Lins adquiriu, vivenciando-o, o palavreado dos canaviais, os termos afrodescendentes, do engenho e das noites sem trabalho da gente da moenda ou da casa de farinha.
Teve infância e adolescência livres para isso, onde e quando nasceu, exatamente em 03 de junho de 1901, no Engenho Corredor, no Município de Pilar, como não só descendente de família de senhores de engenho, mas, de corpo e alma, filho do próprio engenho, meio que lhe pariu uma simplicidade atrevida, facilitando a sua fala, nunca dificultada, posteriormente pela academia ou pela literatura, romances e poesias europeias, que tanto lera.
Com as tias e na escola, José Lins aprendeu a língua da casa grande; com os moleques, companheiros de banho, no rio, nas cacimbas, nos açudes e nas brincadeiras dos esconderijos nos canaviais, o idioma da senzala. Órfão aos quatro anos, passou à responsabilidade do avô, Coronel José Lins, mas, praticamente aos cuidados das tias Maria e Naninha, com quem aprendeu as primeiras letras, as quais relatavam, tim-tim por tim-tim, da vida do menino. Uns davam a fama de Zé Lins ser uma criança triste e taciturna. Isso, somente quando era acometido por esporádica crise asmática. Curado, de repente voltava a ser o peralta extrovertido e bem comunicativo, no meio dos amigos, em que se distinguia pela sua inteligência. Diga-se de passagem, do seu meio aristocrático, sobretudo com primos e primas, nada havia que contrariasse a sua simplicidade.
Emotivo e voluntarioso. Emotivo, quando chegou a discutir e brigar corpo a corpo com político de Manhuaçu; quando, no Maracanã, xingava o juiz de futebol, torcendo pelo seu Flamengo. Comenta-se que, mesmo o Flamengo ganhando de 5X2, já nos minutos finais, Zé Lins ruía as unhas, temendo reviravolta do placar: - “Vai dar tempo para empatar?” Voluntarioso, quando fugiu do internato da Escola do Professor Maciel, em Itabaiana; pegou o trem e desceu em Pilar, para voltar à tão desejada vida do engenho. Também birrento, ao se negar, descaradamente, às senhoras da cidade e ao avô, saudar o arcebispo Dom Adauto, quando o reverendíssimo fazia “visita episcopal” à Paróquia do Pilar. Desapontou a todos, sobretudo, o avô que tinha muito investido nos seus estudos, na Faculdade de Direito do Recife, para que ele se capacitasse a fazer discursos, como aqueles de Rui Barbosa, Castro Pinto ou Epitácio Pessoa. A todos, simplesmente, Zé Lins disse não, indo deitar-se numa rede do alpendre do Engenho para ler jornais da Parahyba e do Recife.
Otto Maria Carpeaux chegou a afirmar que Zé Lins é “o maior contador de histórias desta banda da América”, o que me lembra Gabriel Garcia Marquez, de Cem Anos de Solidão. E meu tio José Augusto de Brito nos falava e escreveu que Zé Lins, mesmo quase adulto, pedia às negras contadoras de história, como era o caso da velha Totonha, para contarem história, e assim, aprendia a simplicidade e fascinante brevidade de expressão, o que caracteriza seus escritos. O “esto brevis et placebis” (sê breve e agradarás) parece ser extensivo tanto à retórica, quanto a quem escreve. Ao que aplico à brevidade “zéliniana” nas suas fenomenais sentenças, com gosto popular, fina ironia e esplêndida clareza. Por isso, Zé Lins não tolerava textos enfadonhos, construídos com palavras rebuscadas.
O tio José Augusto, casado com a amada Emília, irmã do meu pai Inácio, e ex-prefeito de Pilar, era também um contador de história, amigo de personagens de Zé Lins, bem conhecido de Papa-rabo, narrava suas histórias e também, com perfeição, as contadas por José Lins. Das suas narrações, duas se fixaram na minha memória: a da visita do Imperador Dom Pedro II a Pilar, todos os transtornos, a simplicidade do Imperador, usando rede, tamborete e cavalo, como também conversando com povo, a despeito dos integrantes da Corte. E a outra foi sobre o mundo de Zé Lins, ao descrever, com todos os detalhes, seus banhos nas águas do Rio Paraíba; os lances das lavadeiras, de cócoras, à beira das cacimbas; suas filhas, aos olhos do Menino de Engenho, dando bundacanastras, com alguns moleques, da pedra mais alta, que ficava à margem da correnteza. O seu narrar era repetição de Menino do Engenho, autenticamente José Lins do Rêgo. Li todos os romances do meu conterrâneo, a sentença que memorizei, como a mais cheia de riqueza e brevidade, escrita por ele, foi aquela para definir os limites do latifúndio do avô: “O sol, que nasce no Santa Rosa, morre no Santa Rosa”.