Dificuldades na Autodeclaração Étnico-Racial
Era o ano de 1960. Nosso tradicional IBGE realizaria mais um censo demográfico. A vida tinha como palco Belém do Pará. O IBGE abriu seleção para recenseador. Testes e entrevistas indicariam os responsáveis, para realizarem as perguntas e preenchimento do questionário aos domiciliados na bucólica e bela Belém, naquela ocasião, habitada por, aproximadamente, 150 mil indivíduos.
Estudante, pertencente ao que hoje denominam classe “C”, precisava demais da remuneração paga por questionário preenchido. Inscrição, testes, entrevistas e, enfim, aprovação. Saímos num bater de porta em porta e a preencher os questionários.
Uma dessas experiências marcou tanto, que foi fácil sua seleção como crônica. Era casinha simples de chão batido, cobertas com palmas de açaizeiro. A solidão era plasmada num único morador, sexagenário que, para a época, era um fenômeno de longevidade.
Justamente, naquele censo teve início a auto declaração. Por esse motivo, ao chegar ao quesito cor e por ele não ter a cor do que eu conceituava como preto, negro, chamei-lhe a atenção de que naquele censo fora criada a alternativa parda. Foi então que aquele aparente ermitão, fenômeno de longevidade, disse-me algo que me soou tão sábio, que experimentaria toda vez que estive na posição de recenseado e respondi sobre o quesito raça ao recenseador.
Surpreendeu-me o sexagenário: meu filho, acho de extrema pobreza essa pergunta, voltada à cor de pele. Suspendeu a camisa, arriou um pouquinho a calça e mostrou que sua cor de pele original era bem mais clara do que a de sua pele exposta.
E continuou a me surpreender. Veja como essas cores do questionário não têm condição de definir a anarquia que represento: minha alimentação está mais próxima do indígena; na música me identifico com o carimbó, com o lundu e não tenho qualquer identificação com ópera, mas aprecio as valsas, os choros e, muitas das ditas clássicas; com relação à religião, fui educado na umbanda, mas depois que me entregaram para viver em Belém, na casa de gente de posse, passei a ser influenciado e fui batizado como Adventista do Sétimo Dia. Hoje me considero sem religião, mais homem de muita crença no divino.
Então, vou autodeclarar pardo, pois é espécie de conceito de muita anarquia é o que contém infinidade de matizes, vai do quase preto ao quase branco.
Todas as vezes que fui recenseado, a presença desse senhor e sua sabedoria afloram em lembranças e vivo o mesmo dilema e repito a sábia resposta: autodeclaro pardo que é o que mais se aproxima da anarquia que represento. Arreio um pouquinho a cintura de minha calça e mostro ao recenseador que por minha cor original, sou quase branco , mas minha etnia é mosaico de partes da africana, da europeia e da indígena.
Digo mais ainda ao recenseador: esse mosaico com o tempo, nesse Brasil, paraíso do caldeamento étnico, vai fortalecendo contornos, harmonizando seu colorido que se tornará nova etnia, o que mais próximo se construiu, como síntese étnica e racial e de características universais.
Nunca tive oportunidade de agradecer ao recenseado, fenômeno de longevidade, pela sabedoria compartilhada.
Antes bem tarde do o que nunca, muito obrigado.