Viagem a Lantana (*)

(*) Nem tudo são flores no Planeta Jardim - Crônicas de um futuro possível

APIABÁ (20.8 S, 47.5 O), 13/12/3.314

Vou contar hoje uma viagem a Lantana, que fizemos quarenta anos atrás. Ficamos sabendo que naquela cidade eles estavam com problemas de manutenção do saibro das avenidas, porque as estruturas laterais dos logradouros, construídas há quatrocentos anos, começaram ceder lentamente a partir de dez ou vinte anos atrás.

No início do Serviço Obrigatório, estando em férias, fomos eu, Pedrinho Dente-de-Rato e Çiria (*), pedalando 340 quilômetros só de ida para conhecer de perto uma curiosidade paisagística. Podíamos ter requisitado um quadriciclo comunitário, mas éramos jovens e preferimos os velhos e bons biciclos, pois assim teríamos desculpa para ficar viajando mais tempo. A viagem requereu um pouco mais de esforço que o previsto, porque o tempo estava chuvoso e as baterias solares não recarregavam adequadamente.

Em compensação, rimos o tempo todo, porque nos trechos de aclive Pedrinho Dente-de-Rato, rijo como um arco de berimbau, pedalava com leveza e chegava no topo bem antes que nós, enquanto que Çiria, com seus 165 centímetros e mais de oitenta quilos ficava para trás. Nos declives Çiria ficava com a vantagem, pois seu peso e compleição compacta faziam o veículo alcançar oitenta quilômetros por hora. Moral da história: só conseguíamos sincronizar nossos ritmos nos trechos planos, e foi assim a viagem inteira: — Vamos lá, Çiria, você consegue. Calma lá Pedrinho, não vá levantar vôo.

Em Lantana(**) fomos direto para a área dos problemas de manutenção das avenidas. Moradores lantanenses indicaram os locais, e eram muitos, sempre nas partes mais inclinadas do relevo da cidade. Pedrinho foi quem diagnosticou primeiro: — Parece que os muros estão cedendo porque aqui o solo é arenoso. As pedras dos muros laterais foram bem cortadas e assentadas, mas as fundações não são robustas o suficiente.

Çiria não deixou Pedrinho terminar de falar: — Então pedalamos trezentos e quarenta quilômetros para descobrir que quatrocentos anos atrás alguém calculou mal a resistência do solo? Se foi só isso, porque os muros não cederam dez, vinte, cinquenta anos depois de construídos? Porque resistiram quatrocentos anos só agora começaram arriar?

— Calma, gente – entrei na coversa. Alguma coisa na história da cidade mudou durante esses quatrocentos anos. Acabamos de chegar e estamos cansados. Vamos tomar banho, comer, descansar e depois falamos nisso.

Ficamos em Lantana durante quatro dias. Os lantanenses são um povo alegre, extremamente musical e bem humorado. O espaço comunitário deles é um dodecágono de trezentos metros de diâmetro e apenas dois pisos. O espaço interno é formado por dodecágonos concêntricos, separados por jardins internos, e no centro há um belíssimo domo de vidro, um hemisfério perfeito com vinte e quatro metros de altura, formado por hexágonos, cobrindo uma arena equipada para todo tipo de apresentações musicais, de dança e teatro. A piada preferida dos lantanenses é que o espaço comunitário tomou a forma de um dodecágono porque na época foi projetado por engenheiros que gostavam muito de música “dode-cafona”, trocadilho infame para música “dodecafônica”.

Os dias em Lantana foram bastante agradáveis, graças à hospitalidade singular dos lantanenses. Eles não deixam faltar nada para os visitantes, mas não ficam paparicando ninguém: “— Olha. Está aí. Fique à vontade. Eu vou indo. Tudo bem? Qualquer coisa, é só pedir. Tchau.” Deve ser a música que deixa as pessoas meio desligadas do que vai pelo mundo. É claro que há alguns lantaneses mais “sérios”, mais preocupados com o abastecimento e manutenção da cidade do que com a especialidade do povo local, a música e a fabricação de instrumentos musicais.

Nós três tratamos de aproveitar ao máximo. Conhecemos muita gente interessante, fizemos amizades, namoramos bastante, comemos e bebemos à vontade, e voltamos. Trouxe como lembrança um bandolim que ganhei de presente de uma garota chamada Deisi. Çiria ganhou um violoncelo, mas preferiu trocá-lo por livros e cópias de partituras que encontrou em uma loja de usados. Ela disse que foi por causa do volume do instrumento, que iria causar problemas na viagem de volta, mas desconfio que ela não gostou do presente porque um violoncelo é maior do que ela e a faz sentir-se mais baixinha e gorda do que realmente é. Quem deu o presente foi distraído ou mal intencionado. Pedrinho, não lembro.

Por quê os muros laterais das avenidas de Lantana esperaram quatrocentos anos para começar a ceder? Ficamos sem saber. O povo de Lantana nunca se preocupou muito em conservar a história. Lá, ninguém sabe o que era diferente na cidade quatrocentos anos atrás, ou duzentos, ou mesmo cinquenta anos. Estão mais preocupados com a música, e com a produção de madeiras, metais e polímeros para fabricar instrumentos. Aparentemente sãotodos cidadãos responsáveis, cumprem suas obrigações e não deixam faltar saibro nas avenidas, mas não prestam muita atenção nisso nas razões do lento desmoronamento dos muros de contenção. Fazem o serviço necessário e partem logo para o que mais lhes interessa na vida, a música. Modo interessante de ser feliz.

(*) Çiria: o nome dela se escreve assim mesmo, com o vetusto “Ç”, letra antiqüíssima com som de “SA”, formada por um “CA” ornado com um pequeno e absurdo “SA” embaixo, para representar a alt=eração fonética. Porque inventaram esse nome para ela, não sei, mas com certeza ficou original.

(**) 22.6 S, 45.3 O = 210 km em linha reta sentido Sudeste.

Giacomo Cattoni
Enviado por Marco Antonio Mondini em 22/05/2021
Reeditado em 06/12/2023
Código do texto: T7261611
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