Desculpe, Rita Lee, não era com você.

Lendo ontem a notícia de que você está apresentando um quadro de tumor no pulmão, me senti entristecida, cabisbaixa e muito, muito reflexiva.

Confesso que demorei muito a te admirar, a ter prazer em ouvir suas músicas, a sua voz melodiosa e firme. Na realidade, tempos atrás, eu tinha uma dificuldade imensa, homérica em te ouvir.

Explico: o ano era 1975, lembra? Tempos dificílimos nesse Brasil varonil. Na época, a ditadura roubava os nossos sonhos, os nossos desejos eram sempre trancafiados pelo medo que provinha de todos os lados, de todos os lugares. Era como se a vida não andasse, as nossas pernas doíam pela necessidade da caminhada que não havia. Era um esforço cotidiano para respirar, para acreditar. O medo em conversar era terrivelmente marcante. Não sabíamos em quem poder confiar.

E mais: na minha casa eu vivia um inferno particular. Quero te explicar para que você me perdoe: morávamos num apartamento vizinho a uma delegacia e lá havia tortura. Pela madrugada os gritos incendiavam a minha alma e a dor da impotência me marcou para toda a vida. Jamais me esqueci daquele tempo tão sombrio, amargo e sem primavera. O meu pai, desempregado, eternamente acamado, de pijama – vestimenta que passei a odiar – também não nos deixava caminhar. E o meu irmão ouvia as suas músicas numa altura insuportável fechado no quarto enquanto a tortura na delegacia corria solta. E esse irmão – que Deus o tenha – foi uma marca muito negativa na nossa história, sem a mínima responsabilidade com a vida, com a família, com os estudos, com nada. E com traços claros de pedofilia que os pais sempre fingiram não saber. Um traste, um inútil...

E aí ele te ouvia : “levava uma vida sossegadaaaaa.... gostava de sombra e água frescaaaa”.

Eu tinha pavor ao chegar em casa e ouvir isso. Eu vinha do meu curso, no meu segundo ano de ensino médio, apavorada com o assassinato de Wladimir Herzog e tendo que rasgar livros comprometedores e não ser presa também.

Rita, desculpe! Não era com você.

A briga não sonora, porque não se podia falar contra, era com o meu irmão, um primoroso egoísta, desclassificado e que marcava presença naquela casa pobre e que dizia que havia nascido para ser rico. Os outros que se esfolassem para que ele tivesse de tudo sem o menor esforço. E a sua voz, Rita, como tétrico pano de fundo para tudo isso.

Passadas algumas décadas, no tempo da minha única gravidez, eu passei a te ouvir com muito prazer. Isso em 1987. O meu filho, dentro da minha barriga, pulava feliz quando eu colocava um disco seu para tocar. E aí eu percebi o quanto você esbanjava vida, juventude e poesia. Foi o meu Vinícius que me ensinou a te respeitar, a achar beleza em você.

Desculpe, Rita. Não era com você a minha antipatia, o meu desprezo, a vontade de sair correndo ao ouvir tua voz. Era da vida que eu queria correr como maratonista de primeira grandeza. Era vontade de sumir daquela realidade insana que penetrou nas minhas células, na minha alma, invadiu a minha consciência. Pelo medo, pela solidão, pela incapacidade de entender uma família assim tão disfuncional, suportando o terrorismo de um estado ultrajante.

Hoje eu gosto muito de você, Rita, porque me faz lembrar que é possível acreditar na beleza, na paz e ter esperança.

Kika Moraes
Enviado por Kika Moraes em 21/05/2021
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