Um pouco de História (*)

(*) Nem tudo são flores no Planeta Jardim - Crônicas de um futuro possível

APIABÁ (20.8 S, 47.5 O), 27/10/3.314

Fui convidado para participar de um debate sobre a história da Era Atual, dentro de quinze dias, em uma academia de Kuaray Haku, a cidade do calor do sol, de 45 mil habitantes, localizada 60 quilômetros a Noroeste de Guarapoã. Fui prevenido de que alguns professores daquela cidade têm ensinado algumas versões novas sobre a sobrevivência das comunidades cooperativas pioneiras. Não souberam dizer-me quais são essas versões, mas obviamente terei que me preparar a respeito, e aguardar ouvir o que eles têm a dizer, para então contrapor meus pontos de vista.

Não sou especialista em História. Nem sei porque fui convidado. Deve ser porque tenho mais de sessenta anos, tenho portanto regalias de menos horas-almas a cumprir, e meu labor não já não faz tanta falta quanto o dos mais jovens. Vou defender, portanto, pontos de vista ortodoxos, tais como aprendi na idade escolar, com alguns “enfeites” adquiridos na troca de correspondências que fiz com amigos da cidade orbital que visitei, mais de quarenta anos atrás.

As primeiras comunidades cooperativas tidas como pioneiras da Era Nova surgiram no Planalto Central da América do Sul e orla Sul da Floresta Amazônica, onde as terras ainda eram relativamente baratas nos meados do século XXI. Outras surgiram concomitantemente na região subsahariana da África e numa faixa formada entre Etiópia e Senegal. Os pioneiros, em sua maioria provenientes da Europa, tiveram o sábio cuidado de comprar as terras menos cobiçadas em razão da fertilidade ou de recursos minerais conhecidos, para não despertar a cobiça das corporações capitalistas da época.

O que tinham em comum, aqueles pioneiros, era a idéia de estabelecer comunidades com estilo de vida de baixo consumo de energia, abrindo mão da maioria dos confortos disponíveis nos “países desenvolvidos” da época, mas valendo-se da “tecnologia de ponta” para prover com baixíssimo custo necessidades como energia, água e recuperação da fertilidade dos solos.

O grande mistério histórico é como – ou por quê – tais comunidades prosperaram sem tornar-se alvo de guerras ou de ações armadas de conquista ou destruição, e porque também não sofreram significativos boicotes dos “povos tecnológicos”, ou seja, das economias capitalistas, que formavam uma espessa rede mundial de interesses e sustentavam uma verdadeira guerra por ganhos financeiros.

O que aprendi na escola foi que dois fatores concorreram para esse fenômeno, já que era de se esperar que a prosperidade de tantos milhões de pessoas despertasse a cobiça das corporações capitalistas.

O primeiro fator teria sido a camuflagem cultural das comunidades cooperativas. Quando se estabeleceram, obedeciam estritamente as leis dos países onde se localizavam, utilizavam o seu sistema financeiro nas trocas comerciais, pagavam os impostos, enfim, comportavam-se como empreendimentos comuns, apenas buscando objetivos um tanto diversos das empresas da época. Em vez de pugnar pelo lucro financeiro, como qualquer “agrobusiness”, seu objetivo era manter-se, suprindo as próprias necessidades básicas, com um estilo de vida de baixo consumo de energia, o mais independente possível e próximo da Natureza.

O segundo fator teria sido a “camuflagem econômica”.

As comunidades cooperativas não demandavam da economia formal grandes quantidades de fertilizante químicos, nem máquinas e equipamentos de alto custo, e também não dependiam da armazenagem e venda de safras nos mercados de “commodities”. Desenvolviam técnicas para lavouras de subsistência, vendiam pequenos e variados excedentes nos mercados regionais, e usavam o dinheiro para comprar materiais e equipamentos, sempre de acordo com as necessidades do seu estilo de vida simples, rude, sofisticado apenas na intimidade do planejamento e reprodução do modo de vida. Em lugar de comprar equipamentos prontos, como por exemplo os geradores de energia solar, as comunidades se esforçavam para possuir a tecnologia própria, adquirindo apenas os materiais básicos tais como as pastilhas fotovoltaicas, as chapas, tubos e cabos metálicos, os componentes dos acumuladores e materiais de isolamento e assim por diante, formando de certo modo um mercado interessante – mas não muito – para as indústrias da economia formal.

As comunidades ficavam assim “invisíveis” para o mundo “globalizado”, que seguia o curso da Era Moderna, com sua “economia de mercado” ancorada na “obsolescência programada” e no “capitalismo financeiro”.

Seu estranho modo de prosperidade atraía muita gente das classes médias, pessoas com preparo intelectual elevado, mas atraíam principalmente os “despossuídos”, para quem comida e um lugar salubre para morar eram uma “conquista do paraíso terrestre”. Os governos davam graças a Deus por livrar-se da responsabilidade de manter esses contingentes humanos mediante onerosos “programas sociais”. As comunidades cooperativas, muitas vezes chamadas de “organizações não-governamentais autônomas”, ou “independentes”, enquanto pagassem os impostos e não representassem perigo militar eram consideradas aliadas dos governos.

Nas comunidades cooperativas, que com o tempo se transformaram nas atuais cidades, não havia prefeituras e órgãos oficiais, pois eram consideradas organizações empresariais, ou organizações não-governamentais, regidas por estatutos próprios, que não confrontavam as leis dos seus países.Contudo, na medida do possível, sutilmente dispensavam as atenções dos governos oficiais e autogovernavam-se através dos conselhos locais e dos conselhos regionais, estes últimos estabelecidos para regular as relações de trocas e o intercâmbio cultural e tecnológico.

As comunidades prosperaram e se tornaram cidades de 5 a 20 mil habitantes (séculos depois atingiram a média de 20 a 50 mil), que gradualmente esvaziaram e substituíram as cidades antes existentes. Os contingentes humanos que preferiam prosseguir no estilo de vida da Era Moderna foram gradativamente migrando para a Europa, América do Norte e Extremo-Oriente, onde persistia a economia capitalista, cada vez mais sofisticada, menos populosa e mais entrópica. Por volta do século XXV, os governos estabelecidos esvaziaram-se naturalmente e logo foi possível alterar suas constituições de modo a incorporar as comunidades/cidades cooperativas entre as instituições oficiais.

O “salto quântico” cultural nos primórdios da Era Atual foi a capacidade de absorver amplos contingentes de cidadãos “despossuídos” e transformá-los em cidadãos ajustados, produtivos e felizes, no curso de cinco ou seis gerações apenas.

O que eu tenho a acrescentar à versão escolar desses fatos, ponto de vista que aprendi com amigos da ONT (Organização das Nações Tecnológicas) durante e depois das viagens de intercâmbio que realizei na juventude, é a tese histórica do esvaziamento dos núcleos de poder econômico do capitalismo moderno. Quando dissolveram-se, a economia capitalista e tecnológica tornou-se cada vez mais entrópica e ignorou o restante da humanidade, que expandia-se e desenvolvia uma consciência própria, livre dos valores da civilização até então dominante.

Até o século XXI, tais núcleos de poder, formados por determinadas clãs familiares, controlavam o sistema financeiro mundial, a indústria do petróleo, o comércio de ouro e diamantes, as agências de notícia, de informação e de investigação, os laboratórios farmacêuticos, a indústria bélica. Manipulavam as democracias, eventuais ditaduras, a política mundial e as políticas regionais. Promoviam e extinguiam guerras, decidiam o que era bom, bonito e verdadeiro, exercendo uma espécie de “governo mundial e invisível”. As “elites econômicas”, detentoras dos capitais secundários, e a “terceira esfera”, formada pelas classes médias mais abastadas, seguiam a ideologia, imitavam o estilo de vida dos núcleos de poder, e obedeciam às suas imposições. Quem não possuísse grande ambição financeira nesse topo de pirâmide não seria merecedor do poder e da fortuna. A imensa maioria das populações vivia à margem desse processo histórico sem dar-se conta do que acontecia nas “altas esferas”, trabalhando para sobreviver e consumir o que o “sistema” lhes proporcionava.

Depois de um período de poder mundial, esses núcleos de poder gradualmente esvaziaram-se, diluíram-se, arrefecendo a “ganância corporativa”, coração pulsante da economia capitalista e tecnológica globalizada. Sua ideologia no entanto permaneceu por muitas e muitas décadas numa espécie de “governo acéfalo”, pois a estrutura econômica e tecnológica permanecia e prosseguia funcionando através dos grandes conglomerados empresariais. As fontes de energia fósseis (petróleo, carvão, gás) foram gradualmente substituídas pelos equipamentos de energia solar e eólica, os aglomerados urbanos prosseguiram crescendo e verticalizando-se, seus habitantes recebiam treinamentos cada vez mais intensos para o gerenciamento e operação da imensa estrutura produtiva. Quem não suportasse tal regime de trabalho, por alguma “fraqueza” pessoal ou por conflitos morais, era marginalizado e não raro migrava para as comunidades cooperativas, submetendo-se à reeducação e ao estilo de vida de mínimo consumo de energia.

A partir de então, num processo que já dura mais de um milênio, as cidades tecnológicas foram se aglomerando no continente norte-americano, Europa, Oriente Médio, Austrália e leste da Ásia, enquanto que os demais territórios foram sendo tomados pelas comunidades cooperativas; América do Sul, África e a maior parte do continente asiático, inclusive desertos e regiões montanhosas, cobriram-se de uma miríade de pequenas cidades articuladas entre si, exceto as áreas de mineração exploradas pelos povos tecnológicos. Importante destacar que nesse período também inauguraram-se as cidades orbitais, voltadas para a exploração de recursos minerais do cinturão de asteróides, quiçá o embrião das expansões interplanetárias.

As antigas previsões de futuro apocalíptico não se concretizaram. Hoje, passados quase 1.300 anos desde as primeiras comunidades cooperativas da Era Atual, convivem “duas humanidades” independentes, que pouco conversam entre si no entanto não se agridem. O que as separa de fato são seus projetos escatológicos: os povos tecnológicos vivem para construir, manter e aperfeiçoar uma civilização baseada em máquinas e olha para as estrelas, pensando em como conquistá-las; os povos da Era Atual vivem para recriar o paraíso terrestre, ajardinando o planeta como se fosse um só quintal, o “Planeta Jardim”.

É isso aí… Estou curioso para saber que novidades históricas verei em Kuaray Haku, a cidade do calor do sol.

Giacomo Cattoni
Enviado por Marco Antonio Mondini em 21/05/2021
Reeditado em 06/12/2023
Código do texto: T7260516
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