João Sonhador
João era um sonhador. Desde sempre vislumbrava cenários de sonhos para seu futuro, onde a abundância de bens carregaria de felicidade sua vida. De família pobre desde sempre foi educado para o trabalho. Nunca recebeu dos pais a informação sobre a importância da educação para pensar maior.
“O trabalho dignifica o homem!”
“Deus ajuda quem cedo madruga!”
“O único lugar aonde o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário.”
Mas seus pais não tinham culpa da pouca importância que davam para a educação, repassavam o que tiveram. E com seis irmãos, os pais tinham que trabalhar muito para o sustento da prole e assim que João, filho mais velho já pôde trabalhar, mostraram que ele era importante (para “ele” entendam o trabalho dele - João). Assim com 13 anos já vendia bala nos sinaleiros e depois conseguiu um trabalho num mercado, onde viu sua importância ser motivo de orgulho para os pais que contavam orgulhosos, quando ouviam que outras crianças na mesma idade estudavam, que seu filho mais velho já estava se tornando um homem e tinha emprego quase com carteira assinada – o assinada aqui era a fala do dono do mercado, seu Wenceslau, que vinculava sua promessa a dedicação máxima que conseguisse extrair do rapaz. Realmente João estava virando um homem e com 17 para 18 anos engravidou sua namorada, a Maria, de 14.
Ouviu muito do seu pai, o severo Sebastião, que estava vendo que sua ajuda financeira iria se acabar. A mãe, dona Cacilda, sempre amorosa, acolheu a menina assustada e disse que daria tudo certo. Para isto dava como exemplo sua família, pobre, mas que conseguia dar de comer a 7 filhos. O exemplo não era nada animador – Maria gostaria de tudo, menos ser uma família que passasse apuros e lhe apavoravam visões de um desenrolar provável da sua história.
João conseguiu finalmente ter o emprego com carteira assinada – Wenceslau compadeceu-se da situação do bom rapaz que agora teria que ganhar um pouco mais, pois seria pai de família e teria bocas para alimentar - a sua e pouco tempo depois outras três. Sim, seu primeiro filho, Pedrinho, não esperou muito para ganhar um irmãozinho e, um ano e meio depois, já roubava a chupeta do recém nascido, Zézinho - José foi o nome sugerido pela mãe, dona Cacilda que era devota de São José. Ela lembrava que ele era o santo padroeiro do trabalho e que agora João teria que trabalhar mais, pois ganhara outra boca para alimentar.
Maria, que cursava o 2º grau tinha deixado a escola para ser uma dona (inquilina) de casa – na verdade não chegava a ser uma casa, eles conseguiram alugar um quarto e sala - que eles poderiam ou gostariam de crer que eram dois quartos, uma vez que o espaço para a cama de casal e outra cama mais um cesto eram separados por uma cortina. Mas voltando a Maria ela ajudava às vezes com um serviço eventual de diarista. Nos dias que ela trabalhava, as crianças ficavam com a mãe de João. Neste dia ela chegava muito cansada e invariavelmente de mau humor, que seria insuportável, não fosse o suborno de sua ajuda financeira no apertado orçamento do casal.
João se agarrava nestes ensinamentos de trabalho. O sucesso viria por consequência, seria uma recompensa de Deus. Às vezes ele ficava encafifado com pessoas que não trabalhavam e tinham o que era para ele uma definição de sucesso: muito dinheiro, sem preocupações com o aluguel ou com o que por na mesa.
João foi mandado embora do mercado, Wenceslau queria pessoas que tivessem pelo menos terminado o 1º grau. Sentiu-se meio traído – os horários sempre meio demais atravessavam qualquer pouca vontade de estudar. Uma sensação de injustiça faria com que uma boa parte do acerto ficasse num bar, lugar onde buscava explicações, gritando contra deuses e promessas. Naquele dia amigos dos tragos levaram ele e as más notícias para Maria, que chorou em desespero enquanto João dormia pesadamente, com um pouco de vômito na camisa. Ela só parou porque as crianças, assustadas, choravam aos gritos, assustadas num canto. Maria tinha que escolher entre acalmar-se para poder acalmar as crianças ou ficar doida com seus gritos. Acalmou-se, consolou as crianças e disse que papai só estava muito cansado e que no dia seguinte estaria bem. Ela foi dormir na cama de solteiro, junto com os meninos – Zézinho não cabia mais no cesto que improvisava um berço e já com dois anos, dormia com o irmão. No dia seguinte, cedo ela ligou para um grande amigo de João, explicando o ocorrido. Marcelo deixou soltar um “FILHO DA P...”, quando ouviu que o senhor Wenceslau havia despedido seu amigo, mas disse para Maria não se preocupar que na obra onde ele trabalhava de pedreiro estavam contratando e com certeza um homem forte como o João conseguiria emprego como auxiliar.
O serviço era pesado, mas João ganhava mais. Ele só não entendia como, mesmo ganhando mais, ele não conseguia mudar seu padrão de vida e seu salário e meio continuavam a duras custas apenas servindo para manter a família.
À noite quando chegava dava um pouco de atenção para os meninos, que o adoravam e vinham com sorrisos largos o abraçar. E sentava mesmo antes do banho para descansar um pouco. Maria pedia para os meninos deixarem o pai em paz, pois tinha trabalhado muito. João até gostaria de dizer “Não, deixa os meninos”, mas o físico estava esgotado e com ele a sua vontade de ser um pai mais brincalhão do que fora seu Sebastião, sempre tão carrancudo e assustador.
Depois do banho e da janta, os poucos minutos antes de apagar, viajava por aqueles cenários citados lá no primeiro parágrafo, mas contava para eles com um componente milagroso, algo que viria num estalo e que mudaria sua vida e de todos ao seu redor. Talvez um dinheiro para a casa própria, quem sabe um carro usado que o libertasse das caronas do amigo Marcelo e seu fusca. Não que ele não gostasse do Marcelo nem que desdenhasse do fusquinha – na verdade sonhava em comprar um para ele e quem sabe num final de semana levar a família para um passeio num lugar afastado da cidade. Marcelo, que ouvia suas queixas nas caronas, lembrava sua saúde e a sua família linda, a Maria, os meninos, seu lugar para dormir. Marcelo lembrava as pessoas que moram debaixo de pontes e marquises, as pessoas doentes, mas João era um sonhador e sua régua eram os ricos (pelo menos era assim que ele considerava aqueles que tinham uma casa própria, um carro e um emprego estável e menos braçal).
Aqueles minutos antes de dormir, quando já simulava que estava dormindo para não conversar com Maria e ter outra pessoa como Marcelo para tentar levantar sua moral, ele podia sonhar com qualquer coisa – o céu era o limite e ele ia trocando o carro do sonho por outro melhor, uma casa por outra que seria uma mansão, no lugar do emprego, um ganhador de megasena. O sono chegava e parecendo que não tinha nem piscado os olhos ouvia, incrédulo o despertador avisando que deveria se levantar e começar sua rotina de dignificação do homem.
Os anos foram passando, os sonhos não foram se realizando e um dia ele desacreditando Deus questionou para que o onipresente ouvisse: “Onde estaria sua dignidade?” - Não a dele, João, mas a de Deus que ele aprendeu que sempre ajudaria os esforçados. Cadê sua onipotência? Pensou: "Deus é um preguiçoso mesmo, se fosse um funcionário seria no mínimo muito relapso. Não faz o seu trabalho. Tremenda propaganda enganosa".
Mas um dia aconteceu um fato extraordinário: João acordou como que com um entendimento das coisas, uma amplitude de discernimento. Como se conseguisse ver as coisas além dos sonhos. E o que viu? Além dos sonhos? Nada! Não viu nada! Não que isto fosse bom ou ruim apenas era. Ele seguiu sua vida sem ilusões. Não reclamou com nenhum deus. Tirou deles a responsabilidade pela realização dos seus sonhos, mas também se perdoou por também não alcança-los. Se um hipotético Deus, todo poderoso, não era capaz de transformar realidades, porque ele um simples mortal deveria se martirizar por não conseguir alcançar sonhos que por anos e anos foram se mostrando inalcançáveis? Pelo menos para os filhos resignificou trabalho, não romantizando como sempre aprendeu. O trabalho não dignifica o homem. O trabalho te deixa cansado, o trabalho te deixa doente, o trabalho rouba seu tempo com as crianças. O que dignifica o homem é por comida na mesa. Se tiver que trabalhar para isto então trabalhe, mas se conseguir fazer trabalhando menos, quanto melhor.
Fez os filhos entenderem que o estudo era importante para eles não repetirem o pai. Mas não seria como um chefe esperando por resultados, seria um pai desejando suas felicidades. A felicidade e realização deles seria sua alegria. Seu ensinamento seria seu legado. Assim sua vida ainda teria significado.
João estava abrindo mão dos seus sonhos, mas não estava deixando de ser o “João Sonhador”. Somente agora sonhava os sonhos dos filhos. E aqueles minutinhos que antes usava para sonhar, aproveitava para dormir mais, pois no dia seguinte, bem cedo, com ou sem ajuda de Deus, ele ira trabalhar.