Isso não é apenas um conto de terror

Logo ao sair do trabalho, noto que a chuva está forte lá fora. Eu tenho guarda-chuva, mas o que me preocupa não é isso. É a solidão nas ruas quando chove. Antes, eu adorava a chuva, achava que tudo ganhava uma cor diferente, um tom nostálgico como se fosse um dos meus melhores sonhos. Mas de uns tempos pra cá, acho que o que prevalece em mim é a maldade humana. E até na falta de outros seres humanos, eu me sinto insegura. Sempre há alguém escondido.

Respiro fundo ao me despedir da colega de trabalho que pegou uma carona no meu guarda-chuva. Agora sou só eu. Eu ando apressada, mas não tão apressada a ponto de parecer que estou com medo (embora eu esteja). Prendo a respiração ao ouvir passos nas poças de água atrás de mim. Resisto a tentação de correr, olho para trás, é um homem, não muito novo, com um boné. Eu continuo andando, agora um pouco mais rápido, a mochila pra frente (embora o que eu tenha de mais precioso lá seja um livro que estou terminando de ler), os passos quase tropeçando na própria perna.

Chego ao ponto mais aberto da rua e viro à direita. Como é bom ver os ônibus! Sei que se acontecer algo comigo, ninguém vai descer deles para me ajudar. Mas me consolo pensando que alguém vai ver. Tenho pavor de deixar alguém preocupado comigo, prefiro que me encontrem logo do que me dêem como desaparecida por dias até meu corpo ser encontrado numa vala qualquer.

Chego na parada. Novamente, não há ninguém. Estou segura, mas não tão segura. Reflito que devido à série de acontecimentos desastrosos que aconteceram esses dias, ando sempre tensa, à espera de algo ruim e planejando como reagir. Quase fui atropelada por uma moto, um alcoólatra tentou me bater, fui assaltada... e essas coisas só não foram piores porque eu tinha um plano definido.

Meus pensamentos são interrompidos quando um homem, vestindo roupas velhas e sujas, aparece na parada de ônibus, com uma garrafa de cola. O cheiro é forte e me enoja, mas parece agradá-lo, pois ele mantém a garrafa embaixo do nariz e inspira profundamente. Sinto um arrepio. Ele vai me atacar. Bem lentamente, tiro um grampo do cabelo. É bem grande e pontiagudo, a única arma que tenho. Eu lembro agora porque não gosto de rosas. Eu sou como elas e só tenho um grampo pra me defender.

O homem fica um tempo observando, mas sai da parada. Some. Fico me perguntando onde ele se meteu com toda essa chuva, mas não me dou o luxo de pensar nisso, só quero que meu ônibus passe logo. Passa um, lotado. Faço sinal, vejo os olhos do motorista me olhando na parada e passando direto. Sinto vontade de chorar. Eu estou só parada. Não tem mais ninguém. Só eu. E ele não pensou que eu poderia ser assassinada ali por negligência dele. Ao me virar, vejo o homem da garrafa de cola, ainda me olhando debaixo de uma coberta de uma loja fechada. Tento não demonstrar medo, apesar de minhas mãos começarem a tremer.

Mais dois ônibus. O primeiro não serve pra mim, mas o segundo sim. Eu corro para o meio da rua, na chuva, fazendo sinal com as duas mãos para o motorista parar. Ele passa direto. O homem dá mais uma inspirada na garrafa e vem em minha direção. Olho para o ônibus que ficou parado no sinal vermelho. Corro até ele sem olhar para trás. Bato na porta do ônibus com fúria, até o motorista abrir. Ele abre e eu subo dizendo um sonoro e irônico "muito obrigada!" Ao pagar minha passagem, percebo que ainda tem um lugar vazio. É meu. Sento nele, saco meu livro e tento ler, mas pensamentos giram na minha cabeça. A maldade masculina me assombra. Um homem quase passou por cima de mim numa moto, como só me desequilibrei e caí, ele saiu na moto e todos ficaram me olhando. Vários homens. Nenhum me ajudou. Outro homem, alcoólatra, tentou bater na minha mãe e depois tentou me intimidar. Mas eu não recuei e enfrentei com uma coragem que eu nem sabia que tinha. Em um, apenas em um homem eu confio. Ele está longe. Rezo para Deus não ser um homem. Rezo para uma Deusa: uma mulher preta. Só ela pode me defender.

Depois de uma hora e meia no ônibus, desço. Eu ainda tenho um beco escuro pra enfrentar antes de chegar em casa. Novamente, não há ninguém. Mas desconfio, sempre começa assim. Seguro o grampo na mão direita e o guarda-chuva na esquerda e sigo. Chego ao final do beco, mas quando tento respirar aliviada, uma sombra tapa a saída. É um homem e fala sozinho. Grita como se estivesse brigando com alguém. Ele anda na minha direção. Eu sigo andando, pressinto algo de muito ruim, mas penso que não posso ficar parada. Quando passo ao lado dele, ele grita: "BOA NOITE, NÉ?!"

Eu saio correndo. O cheiro forte de álcool vai ficando mais fraco à medida que me afasto, não olho para trás, com medo de parar. Só corro e corro e corro tão rápido como se fugisse de mim mesma. Ao perceber que estou longe o suficiente do beco, eu recupero o fôlego e ando normalmente.

Abrir a porta de casa é um alívio para mim. Estou viva. Entro no banheiro, tiro a roupa suja e deixo a água molhar meu corpo como se levasse com ela todos os medos desse dia. Saio, lavo minhas roupas, tento comer, mas sinto enjoos. Pego o celular e vejo a mensagem da minha irmã, relatando que pegou um ônibus e um velho tentou passar a mão nela. Ela diz que se levantou e ninguém no ônibus ajudou. Isso dói, mas tento brincar com ela, dizendo "aproveitava logo que era um velho, dava uma bengalada nele." Ela ri. O celular toca, atendo a ligação. "Oi meu amor, como foi seu dia?"

Esse é o momento do meu dia em que eu posso desabar. Eu desabo e choro. Choro muito. Choro por tudo. Por ter que ser mais do que forte todos os dias. Por ter que fingir que não estou com medo, por ter que confiar em um grampo, por não poder mais apreciar a chuva com a mesma poesia de antes e principalmente por ainda ser terça-feira.

E eu queria muito que isso fosse apenas um conto de terror tirado da minha imaginação. Queria mesmo.

Gisely Sanctus
Enviado por Gisely Sanctus em 17/05/2021
Código do texto: T7257867
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