Bolsonarismo, Hobbes e a Escola Austríaca

O sr. Jair Bolsonaro, infelizmente o presidente da República, criou o costume de posar como "defensor da liberdade". Na maior cara de pau, esse político - que durante anos apoiou ideias liberticidas - hoje finge ser quase um Thomas Paine (1737-1809).

Com a pandemia, governadores e prefeitos foram forçados a implementar restrições, fechando comércio e outros estabelecimentos, com o objetivo de impedir a disseminação do coronavírus e consequente colapso no sistema de saúde. Foi a oportunidade perfeita para o Jair, o Libertador aparecer e dizer que luta pela "liberdade do povo" contra a "tirania do sistema".

Ademais, Bolsonaro não segue as recomendações sanitárias - como usar máscara e evitar aglomerações -, anda de moto sem capacete, defende a retirada de radares das rodovias para dar a "liberdade" de dirigir em alta velocidade, se declara contra vacina obrigatória etc. etc. etc. Mas como se deu essa suposta transformação? Como um apologista da ditadura militar virou um "libertário"?

Há alguns meses, publiquei aqui um artigo a respeito disso (cf. O "liberalismo" de Bolsonaro). E existem outros textos tão bons ou melhores que o meu, como estes abaixo:

Liberalismo da destruição, da socióloga Angela Alonso (construí meu artigo a partir desse texto dela);

"Batalhadores do Brasil...", do cientista político Miguel Lago (para assinantes);

Liberdade e lei da selva, editorial do jornal Estado de S. Paulo.

De todos os pontos em comum que há entre os três textos, um me chamou atenção. Os três autores concordam que a noção bolsonarista de "liberdade" expressa o "estado de natureza" - conceito elaborado pelo filósofo Thomas Hobbes (1588-1679) para designar a sociedade pré-Leviatã, isto é, sem Estado, sem normas, onde cada um faz o que deseja e prevalece a lei do mais forte.

No meu artigo "O 'liberalismo' de Bolsonaro" afirmei que o presidente é um populista de direita, entretanto ele não mimetiza plenamente os populistas da Europa e Estados Unidos, pois adotou dogmas da Escola Austríaca. Bolsonaro provavelmente foi influenciado pelo filho Eduardo.

A heterodoxa Escola Austríaca é composta por pensadores que defendem capitalismo desregulamentado ("livre", predatório) e hiperindividualismo - entre esses há até quem defenda a liberdade de direção alcoolizada(!).

Quando deputado federal, Bolsonaro defendia e votava a favor de propostas "estatistas", mas ao iniciar a campanha para presidente, foi pelo caminho da chamada "nova direita", que é influenciada também por teóricos da Escola Austríaca, como o filósofo Ludwig Von Mises (1881-1973), os economistas Friedrich Hayek (1889-1992) e Murray Rothbard (1926-1995), entre outros. O capitão reformado supostamente deixou o "nacionalismo econômico" de lado para bancar o defensor do "Estado mínimo" e da "liberdade". Porém é óbvio que ele não abandonou seu caráter corporativista.

Filósofos e economistas da Escola Austríaca naturalmente rejeitam as conclusões políticas do "estatista" Hobbes: eles não concordam com a tese da necessidade e legitimidade do Estado forte para lidar com o "estado de natureza" - ou o Estado tem que ser minúsculo ou deve deixar de existir (anarcocapitalismo).

O bolsonarismo faz uma interpretação tosca dessas ideias e as mistura com populismo de direita, Doutrina da Segurança Nacional, paranoia anticomunista... Uma mixórdia conflitante, o que leva o presidente a ter posturas ambíguas. Agradar o deus mercado implica, por exemplo, em não interferir na Petrobras para abaixar o preço da gasolina. No entanto, tal decisão afeta pessoas da sua base de apoio, o que o leva a ter impulsos populistas, como cogitar a interferência.

Além disso, Bolsonaro rejeita o "totalitarismo de mercado". Há setores da sociedade e da economia que ele não quer privatizar, como abertamente já declarou.