A crescente idolatria pelo carro
Até quando apareceu, ele não chegou a tal importância, como, hoje, quando pontifica em alguns corações. Era desengonçado, mais parecido com um besouro comprido do que com uma joia, como depois passou a ser considerado. Acho que não existe alguém vivo que não tenha visto, durante a infância, um carro de verdade. Houve o tempo em que “bonito” era o cavalo, trotando com o rico dono pela rua principal da cidade, com cabeça erguida, crina esvoaçante, selado com luxo e adornos. O cavalheiro de paletó, de linho branco ou de brim mescla azul, uniformizado do chapéu de massa ou panamá à caríssima bota, bordada com arte e prata.
Inventaram o carro, depois de que o cavalo se vulgarizou, sendo montaria de guerra, ou, em equipe, puxando charrete, diligência de faroeste ou até carroça de mudança; coisas já usadas na cangalha do carro de boi. Declínio também compartilhado com os jumentos. Contudo, ciganos só eram admirados, em suas retiradas nômades, quando montados em belos alazões. Quem destronou o cavalo, em Pilar, foi o carro do usineiro-mor, comprado para viagem à capital, Recife ou Campina Grande. Ir mais longe se tornava uma temeridade. O carro passou a exigir calçamento nas principais cidades, geralmente feito de pedra, em forma de paralelepípedo; o carro parava, antes de começar a rua com buracos ou com poças d’água, que lhe salpicariam os paralamas. Antes se molhassem os pés do eventual passageiro.
Não foram os pedestres, mas o carro que exigiu um calçamento mais liso, até a estrada de cimento, que José Américo construiu, de João Pessoa a Campina Grande. Essa macieza da estrada, por razões econômicas, foi conquistada pelo asfalto, saindo das estradas e invadindo ruas, bairros e até os centros históricos de cidades patrimoniais. O carro determinou, para andar sem catabi e solavancos, ruas asfaltadas, como a pista dos sambódromos. No começo eram as pedras, mesmo disformes, pontudas, contudo, resistentes. Mas, afrouxavam os parafusos do carro, essa majestade. Tudo para o carro, essa é a loucura. Nada ao coitado do desaparecido cavalo, do desrespeitado pedestre. Depois do automóvel, sucede o sobejo às bicicletas, às motocicletas, aos ônibus coletivos, especialmente aos de turismo. Menos às carroças, puxadas a burro ou a cavalo, que são proibidas pelos apitos do carro.
A era do automóvel começou e não há tempo para terminar, já causando uma poluição sufocante, da qual somos vítimas, como Marcello Mastroianni, dentro de uma macchina, dentro de um túnel romano, quase dentro do Vaticano, dentro de um tráfego congestionado, parado, filmado por Frederico Fellini. Antigamente, o automóvel aparecia apenas aqui e acolá. Hoje, veem-se muito mais carros do que pedestres, estimulados que são a comprarem também o seu carro, numa tendência recomendada de um carro por habitante.
O segundo carro, que apareceu em Pilar, foi o do ‘seu’ Salvador, um Ford 38, sob o qual o dono vivia, consertando. Esse carro de Salvador era a salvação; antes dele, quem desejasse um “carro de praça”, em Pilar, tinha de pedir um de Itabaiana, de onde chegava um taxi mais novo, sem promessa de pane. Meu pai era freguês de ‘seu’ Salvador, para ir pagar promessa a São Severino dos Ramos, no Município de Carpina, já em Pernambuco. Várias vezes, descíamos do carro, que não conseguia subir as ladeiras de barro. Carro também tem suas fraquezas, embora seja objeto de esnobismo, sobretudo, no nosso meio, demonstração de poder aquisitivo. Tanto é assim, que, ainda nos meados de 2021, a TV anuncia o Ano Novo, porque o modelo de carro 2022 saiu pelas ruas; há quem ache que o carro seja uma catedral. O trânsito está horrível, muitos e muitos carros. Não seria a vez de se darem mais quantidade e qualidade ao transporte coletivo? Machado de Assis intui, em Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Um cocheiro filósofo costuma dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem”...
Até quando apareceu, ele não chegou a tal importância, como, hoje, quando pontifica em alguns corações. Era desengonçado, mais parecido com um besouro comprido do que com uma joia, como depois passou a ser considerado. Acho que não existe alguém vivo que não tenha visto, durante a infância, um carro de verdade. Houve o tempo em que “bonito” era o cavalo, trotando com o rico dono pela rua principal da cidade, com cabeça erguida, crina esvoaçante, selado com luxo e adornos. O cavalheiro de paletó, de linho branco ou de brim mescla azul, uniformizado do chapéu de massa ou panamá à caríssima bota, bordada com arte e prata.
Inventaram o carro, depois de que o cavalo se vulgarizou, sendo montaria de guerra, ou, em equipe, puxando charrete, diligência de faroeste ou até carroça de mudança; coisas já usadas na cangalha do carro de boi. Declínio também compartilhado com os jumentos. Contudo, ciganos só eram admirados, em suas retiradas nômades, quando montados em belos alazões. Quem destronou o cavalo, em Pilar, foi o carro do usineiro-mor, comprado para viagem à capital, Recife ou Campina Grande. Ir mais longe se tornava uma temeridade. O carro passou a exigir calçamento nas principais cidades, geralmente feito de pedra, em forma de paralelepípedo; o carro parava, antes de começar a rua com buracos ou com poças d’água, que lhe salpicariam os paralamas. Antes se molhassem os pés do eventual passageiro.
Não foram os pedestres, mas o carro que exigiu um calçamento mais liso, até a estrada de cimento, que José Américo construiu, de João Pessoa a Campina Grande. Essa macieza da estrada, por razões econômicas, foi conquistada pelo asfalto, saindo das estradas e invadindo ruas, bairros e até os centros históricos de cidades patrimoniais. O carro determinou, para andar sem catabi e solavancos, ruas asfaltadas, como a pista dos sambódromos. No começo eram as pedras, mesmo disformes, pontudas, contudo, resistentes. Mas, afrouxavam os parafusos do carro, essa majestade. Tudo para o carro, essa é a loucura. Nada ao coitado do desaparecido cavalo, do desrespeitado pedestre. Depois do automóvel, sucede o sobejo às bicicletas, às motocicletas, aos ônibus coletivos, especialmente aos de turismo. Menos às carroças, puxadas a burro ou a cavalo, que são proibidas pelos apitos do carro.
A era do automóvel começou e não há tempo para terminar, já causando uma poluição sufocante, da qual somos vítimas, como Marcello Mastroianni, dentro de uma macchina, dentro de um túnel romano, quase dentro do Vaticano, dentro de um tráfego congestionado, parado, filmado por Frederico Fellini. Antigamente, o automóvel aparecia apenas aqui e acolá. Hoje, veem-se muito mais carros do que pedestres, estimulados que são a comprarem também o seu carro, numa tendência recomendada de um carro por habitante.
O segundo carro, que apareceu em Pilar, foi o do ‘seu’ Salvador, um Ford 38, sob o qual o dono vivia, consertando. Esse carro de Salvador era a salvação; antes dele, quem desejasse um “carro de praça”, em Pilar, tinha de pedir um de Itabaiana, de onde chegava um taxi mais novo, sem promessa de pane. Meu pai era freguês de ‘seu’ Salvador, para ir pagar promessa a São Severino dos Ramos, no Município de Carpina, já em Pernambuco. Várias vezes, descíamos do carro, que não conseguia subir as ladeiras de barro. Carro também tem suas fraquezas, embora seja objeto de esnobismo, sobretudo, no nosso meio, demonstração de poder aquisitivo. Tanto é assim, que, ainda nos meados de 2021, a TV anuncia o Ano Novo, porque o modelo de carro 2022 saiu pelas ruas; há quem ache que o carro seja uma catedral. O trânsito está horrível, muitos e muitos carros. Não seria a vez de se darem mais quantidade e qualidade ao transporte coletivo? Machado de Assis intui, em Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Um cocheiro filósofo costuma dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem”...