Vida focada no espírito (*)
(*) Nem tudo são flores no Planeta Jardim - Crônicas de um futuro possível
APIABÁ (20.8 S, 47.5 O), 02/05/3.321
Estava sentado no meu banco preferido da Praça Oeste, aguardando o pôr-do-sol, quando sentou-se ao meu lado um casal de jovens aparentemente de uma turma dos 16 ou 17 anos. Tímido e muito educadamente, o rapaz usou uma saudação antiga, um tanto fora de moda: "Que tua centelha se fortaleça e ilumine o Cosmo". Respondi na forma tradicional: "Sim, a tua já ilumina minha vida".
Em seguida, o jovem pediu licença, foi se apresentando e dizendo que ele e sua colega ali estavam a mando do preceptor da sua turma. O preceptor dissera a eles que eu tinha sido seu colega de turma na época dos 21 aos 28 anos, e que eu tinha uma teoria singular acerca de uma vida espiritualizada. Os jovens se chamavam Jamil e Karina.
— Já sei — eu disse. O preceptor é o Mário, um grandalhão que parece um u umrso barbudo, mas quando fala parece um urso de pelúcia, está sempre de bom humor e dá aulas como se estivesse recitando algum texto de cor.
— Não, o Professor Mário está na coordenação do Serviço Obrigatório. Nosso preceptor é o Leandro.
— Já sei. Tem cara de alemão, compleição mediana, cabelo ondulado esvoaçante, gosta de História, faz citações da Bíblia como se ele próprio a tivesse escrito, e fala com sotaque carrregado.
— Cara de alemão, sim, mas cabelo parece até que nunca teve. Continua gostando muito de História e cita a Bíblia com ares de clérigo – disse o rapaz.
Fui obrigado a rir, com a descrição. — Clérigo, Leandro desistiu de ser, mas já tinha pegado o jeito – comentei.
Jamil fez que não ouviu o comentário e prosseguiu:
— Ele disse que a gente deveria procurar um jovem magrelo e comprido, olhinhos de rato, cabelo ondulado até os ombros como nobre francês do século XVIII, que pode ser encontrado nas tardes de quinta-feira no banco mais alto da Praça Oeste apreciando o pôr-do-sol.
— O Leandro falou isso de mim?
— Falou. Só errou a cor do cabelo, que é grisalho e agora é curto. Ele também não falou das rugas e das entradas no cabelo.
Karina segurava o riso e cutucava Jamil para ele parar com as brincadeiras.
— Bem, o que vocês precisam saber? - perguntei.
— Estamos estudando vida espiritualizada e vida focada na matéria.
Foi como cutucar no botão que dispara minha verborragia.
— De fato — eu disse, —tenho uma teoria sobre isso, mas não diria que é singular. Ao contrário é praticamente um consenso desde o século XXVIII, há mais de 1.600 anos. O que o Leandro achava diferente era que eu citava as teorias da Física de 1.300 anos atrás, a Teoria Quântica, Teoria das Cordas, Teoria do Tudo e essas vertentes da especulação científica que nunca foram provadas experimentalmente. E eu citava também uma teoria espiritualista da mesma época, um pouco anterior, a Cosmologia Esotérica, que fala dos sete estratos do Cosmo, que variam da matéria sólida ao plano logóico. O Leandro se divertia pedindo para eu explicar a Teoria da Relatividade, só pra me ver atrapalhado.
Jamil e Karina acharam graça, e continuei:
— Qualquer coisa que um ser vivo faça reflete nos planos sutis do Cosmo, do etérico ao logóico e há quem diga que até a matéria bruta fica impregnada com as ações do nosso espírito. Para ser didático, eu digo que um ser vivo autoconsciente é um complexo de matéria bruta misturada com as “substâncias sutis” dos demais planos da existência. Por isso tudo o que é ação, palavra ou pensamento de uma criatura repercute nos planos espirituais, e quando você age as consequências são irresistíveis, para o Bem ou para o Mal. Minha teoria era que isso é possível porque as partículas unidimensionais, que compõem as partículas subatômicas, o magnetismo e todos os fenômenos do Universo físico, são uma face do plano astral voltada para o plano material. São a conexão entre o mundo da matéria e os mundos sutis.
Karina olhava o por-do-sol absorta nas cores do horizonte e Jamil fazia anotações furiosamente. Prossegui:
— Eu dizia que as partículas unidimensionais funcionam como uma espécie de sistema nervoso periférico do plano astral, captando tudo do plano material, através dos pensamentos e sentimentos. Hoje não penso mais assim, porque as ações materiais do ser senciente afetam o plano material, mas ao mesmo tempo afetam diretamente os planos sutis, porque quem de fato está agindo não é apenas o corpo da pessoa. É o conjunto de corpo, alma, mente, espírito. Agem em uníssono todos os componentes sutis da pessoa. A vontade é um atributo da alma, o Eu Sou é espírito. A centelha é espírito, dependendo de como você classifica os estratos do Cosmo. Para simplificar, eu chamo de "mundo divino" todo o conjunto de hierarquias existentes acima do plano mental e abaixo do plano logóico. Cabem aí todas as criaturas que a gnose de dez milênios atrás chamavam de anjos, arcanjos, querubins, serafins, tronos, potestades, o espírito humano, os mestres ascensionados e outras criaturas dos mundos sutis que não recordo no momento.
Jamil me interrompeu:
— O senhor diz, então, que o espírito humano é divino?
— Sim — respondi. — Alguém dúvida disso? A natureza do espírito humano é divina. Podemos chamá-lo de "EU SOU", o que nada mais é do que uma centelha do Logos.
— De fato — prossegui, — há uma interface de comunicação entre o espírito e a matéria, entre o espírito e a vida, entre o espírito e a mente, e essa interface pode ser aquilo que a Teoria das Cordas chama de partículas unidimensionais. Mas essa conectividade não é a explicação da Lei do Retorno, da Lei do Karma, da Lei da Causalidade etc. etc., porque é tão somente "uma engrenagem da máquina cósmica". E nessa "máquina cosmica" microcosmo e macrocosmo funcionam em uníssono.
— Os sentimentos, pensamentos, vontades são condensações de substâncias sutis, próprias das almas, dos anjos, arcanjos, querubins, serafins, tronos, potestades etc. etc., mas acontecem dentro de você, no teu cérebro e no teu sangue, ou seja, são substâncias sutis associadas às substâncias materiais. Por isso o que você sente, pensa, deseja ou realiza concretamente afeta e modifica não apenas as partículas unidimensionais, afeta diretamente todos os planos da existência simultaneamente, modifica e remolda a própria essência do Cosmo.
— Gosto de usar a seguinte imagem: Um homem, por ser imperfeito, pratica um ato maléfico qualquer; cai em si e exclama "Ai, caramba, o que eu fiz?" Deus, o Logos, vê o homem imperfeito em sofrimento moral e exclama "Ai, caramba, o que eu fiz?" Obviamente o "mecanismo" cósmico não é exatamente assim, a imperfeição humana não foi um "ato falho" do criador. Mas a imagem ilustra a conexão e a necessária interdependência entre matéria e espírito, planos densos e planos sutis.
— A vida – prossegui -, é o esforço do Cosmo para se autoaperfeiçoar. A vida humana espiritualizada é aquela que não fica focada nos interesses da vida material, mas tem o propósito de colaborar com o mundo divino no aperfeiçoamento do Cosmo. O auge desse processo será quando o ser humano adquirir vida consciente não apenas no plano mental, mas também no mundo divino, porque nesse momento o Universo adquire autoconsciência e livre arbítrio, tal como um homem.
— O Bem é a qualidade de qualquer nascimento, vida ou morte que ocorre no mundo físico, isso considerando desde os protozoários até os homens santos e mestres ascencionados. O Mal, por sua vez, é qualquer engano ou perturbação da ordem cósmica. Somente seres autodeterminados podem praticar o Mal. É o que os católicos chamavam de "pecado", na Idade Média.
— Quando eu faço música, repito mantras, medito etc., e quando pratico ações construtivas, harmoniosas, especialmente as que provocam alegria, contribuo para o Bem, sou positivo para autorrealização do Cosmo. Quando pratico atos destrutivos, como por exemplo quando destruo uma forma qualquer de vida, ou causo sofrimento a outrem, isso repercute de forma negativa na essência do Cosmo, cria perturbações, manchas no mundo espiritual, por assim dizer, e essas manchas podem ser compensadas, com muito esforço, mas jamais são eliminadas. O homicídio, a qualquer pretexto, é a pior de todas as manchas.
Jamil e Karina me olhavam fixamente, bocas semiabertas, pensamento nas profundezas do Universo, tentando acompanhar e entender o que eu estava dizendo. Me senti orgulhoso, vaidoso.
— Então um ser humano não pode comer... – disse Jamil –. Uma vaca no pasto não pode comer o capim, porque estará destruindo plantas, formas de vida...!?
— Bem... acho que não é bem assim – respondi –. A vaca não destrói o capim, apenas come parte dele e respeita a vida de cada plantinha... Você mata a vaca e come a carne, cria algum sofrimento, mas não destrói uma forma de vida, apenas recicla.
—É... – fez o jovem, pensativo.
— Veja – prossegui –, até certo ponto o Mal é necessário para a evolução cósmica. Quando eu mato uma vaca e faço um churrasco, estou naturalmente gerando um carma, porque destruo uma vida individual para minha satisfação pessoal, mas não é um CAAARMA, porque destruo uma vaca e não A VACA, toda sua espécie. E eu preciso comer, não tem jeito. Posso comer frutos, sementes, raízes sem gerar quase nenhum carma, mas para me tornar um ser autoconsciente, com um cérebro que consome mais energia que uma lâmpada elétrica, preciso de nutrientes. Aliás, posso até me limitar a uma alimentação macrobiótica, mas para eu ser um macrobiota consciente da realidade do carma e darma, meus antepassados, desde a pré-história, quando desceram das árvores para criar civilizações, precisaram comer bilhões de quilos de carne animal. Mas isso já é outro assunto.
Karina pela primeira vez abriu a boca: — O senhor disse que a música também serve para a elevação espiritual? Pensei que uma vida focada no espírito seria apenas oração, meditação, moralidade, ritualística.
— Música é uma das linguagens mais apropriadas para se praticar o Bem – respondi –. Meia hora de bela música afeta o mundo espiritual com muito mais efeito que um dia inteiro de orações e mantras. Menos quando é desafinada.
Karina e Jamil acharam graça. Karina questionou:
— Mas conheço músicos que não têm lá o que se poderia chamar de uma vida focada no espírito. Isso não é contraditório?
— Eu falei que a “música executada” afeta de forma construtiva o mundo espiritual. A vibração harmoniosa dos instrumentos musicais harmoniza as partículas unidimensionais e a harmonia chega aos mundos invisíveis. Mas música é uma coisa e a vida de um músico é outra coisa. Mesmo que ele seja uma pessoa sem virtudes morais, executando boa música ele produz o Bem, enquanto que, ao fazer coisas que não deve, ou não fazendo as coisas que deve fazer, ele pratica o Mal. O Mal é o que destrói ou emperra o aperfeiçoamento do Cosmo. A mesma pessoa pode (mas não deve) praticar tanto o Mal quanto o Bem, em momentos diferentes. Obviamente a música aos poucos torna o músico um ser melhor, porque ele estará constantemente imerso nas partículas unidimensionais sublimificadas pela música. E quando ele tem sua vida focada no espírito, sua música produz um Bem ainda mais intenso, é claro.
Jamil se manifestou:
— Os músicos são pessoas especiais?
— Não, claro que não, especial é aquilo que eles fazem. Qualquer pessoa pratica o Bem cotidianamente só pelo fato de respirar, nem por isso é especial. Apenas cumpre sua obrigação. Eu sou pedreiro, trabalhei a vida inteira na extração de rochas para a construção de edifícios, pontes, muros e todo tipo de infraestrutura. O produto do trabalho do músico afeta o Cosmo sutil diretamente. Já o produto do meu trabalho afeta indiretamente. Minhas pedras não são um Bem, mas as pessoas que podem repousar à noite numa residência construída com as minhas pedras se beneficiam do meu trabalho, e isso é um Bem. Você se sente bem vivendo numa cidade bonita como a nossa, bem construída, funcional, repleta de templos, e se BEM-neficia com isso. E eu me beneficio pelo meu trabalho bem feito, porque o mundo espiritual me agradece pelas pedras que cortei e lapidei para tudo isso ser construído e as pessoas terem seus lares, sua bela cidade.
— Verdade... – disse Karina, pensativa.
— Milhões de litros de suor e lágrimas – disse Jamil.
Karina censurou a falta de respeito do rapaz com uma cotovelada, mas não conseguiu disfarçar o riso.
— Somente nossa cidade tem mais de trezentos jardins, jardinetes, canteiros ornamentados com pedras que eu talhei uma a uma. A beleza dos jardins gera alegria e eleva o espírito de quem os contempla. Portanto, trabalhando nessas pedras, eu pratiquei o Bem, o que vale tanto quanto fazer música. E eu não sou especial, assim como o músico não é especial só porque faz música.
Eu me sentia cada vez mais vaidoso do efeito de minhas palavras.
Jamil interveio: — A Teoria da Relatividade o senhor já disse que não sabe. E a Cosmologia Esotérica, o senhor sabe explicar?
Karina cotovelou Jamil, este se justificou:
— O quê? Que fiz de errado? Só estou perguntando, oras.
Só estava perguntando, mas seus olhos espremidos brilhavam de malícia. Decidi ser humilde e não esticar demais a conversa.
— Também não saberia explicar com muita clareza – respondi. — A respeito da Teoria da Relatividade, da Teoria das Cordas, da Teoria de Tudo e de qualquer teoria da Física, atual ou antiga, cientificamente provada ou não, você pode perguntar ao Professor Mário, ele sabe tudo sobre o assunto. E a Cosmologia Esotérica você pode perguntar ao Professor Leandro, ele deve saber, já que é especialista em História e isso inclui a história das religiões.
Essa eu fiz de propósito. Sabia que Leandro detesta falar sobre esse tipo de assunto, e que o Mário, como qualquer professor, ao contrário de mim, também não tem muita paciência para isso. E para garantir que Jamil colocaria seu preceptor numa situação bem desconfortável, acrescentei:
— Peça ao Professor Leandro explicar a natureza dos planos físico, astral, mental, búdico, espiritual, divino e monádico, e quem são os habitantes desses planos.
— Vou perguntar – disse Jamil, inocente, ou fingindo inocência.
Se ele perguntou ou não, não sei. O fato é que fico rindo por dentro só de imaginar o professor Leandro admitindo que não sabe nada daquilo. Um pouco de sacanagem de leve vai bem, de vez em quando.