Bolsonaro e Cincinato, o romano
Estou lendo no Estadão as excelentes reportagens sobre o orçamento secreto e bilionário de Jair Bolsonaro. Trata-se um esquema forjado no escurinho, à margem das leis e dos controles, com o intuito de favorecer, com emendas parlamentares, deputados federais e senadores apoiadores do desgoverno. Em suma, compra de apoio que custa R$ 3 bilhões aos cofres públicos.
Nas redes sociais, está sendo conhecido como "tratoraço" - em referência às emendas usadas, também, para a compra de tratores superfaturados - e "bolsolão", um neologismo inspirado nos nomes de escândalos anteriores, como "mensalão" e "petrolão".
Bolsonaro passou a campanha eleitoral dizendo que não cederia ao "toma lá, dá cá". No entanto, a reportagem deixa conspícuo o que já não era novidade para ninguém (exceto os bolsominions): o presidente está fazendo o oposto da promessa. Há o agravante, porém: está fazendo de uma forma suspeita, que lembra esquemas corruptos anteriores. Como diz o repórter Breno Pires, autor das reportagens, ocorreu "tudo a portas fechadas, longe do olhar dos eleitores".
Jair Bolsonaro finge ser um presidente "humilde" e "honesto", por isso costuma posar para fotos comendo em restaurantes modestos e vociferar diatribes contra a corrupção (somente a dos adversários, é claro).
Diante dessa característica dele, não consigo deixar de fazer um paralelo com Cincinato, o romano. Mas não o ditador histórico e sim o personagem do escritor Lima Barreto (1881-1922).
Eu sou um pynchoniano convicto, portanto, acredito que a história precisa ser cuidada pelos "fabulistas e falsários, Cantadores de Baladas e Excêntricos dos mais variados Raios, Mestres do Disfarce [...]" (cf. Mason & Dixon). Ou, nesse caso, ser cuidada por um satirista de alto nível como o escritor carioca. Isto posto, vamos ao escrito dele, especificamente ao conto "Cincinato, o romano", e não nos livros didáticos ou acadêmicos.
O conto de Barreto nos relata sobre um professor alemão que "baseado em documentos descobertos na Dácia (Romênia), como sejam inscrições e mesmo fragmentos de manuscritos, fixou definitivamente a fisionomia de Cincinato". O docente nos revela que apesar de o ditador romano sempre aconselhar a prática da agricultura, ele pisava "pouco" em suas terras, "deixando-as entregues aos escravos e libertos". No entanto, para impressionar os plebeus, criou a lenda de que os eleitores o teriam encontrado arando o seu próprio campo.
Bolsonaro foi durante muitos anos um deputado do baixo-clero, inclusive correligionário de Paulo Maluf (ambos estiveram no PP). A corrupção sequer lhe incomodava. Pelo contrário, até lhe beneficiava (e há indícios que ainda beneficie, como mostra o Estadão e outras publicações). Todavia ele se exibia discursando contra corruptos para impressionar os incautos. Criou a lenda de que era "anticorrupção".
Tanto o presidente quanto o Cincinato de Barreto obtiveram sucesso com seus engodos.