AS MULHERES DO BOTELHO

Há quem duvide das verdades de uma crônica, mas esta aconteceu quando eu me preparava para mais um jantar solitário, desses que só um gerente de restaurante pode digeri, bem lá no canto, naquela mesa mais afastada ou mais escondida feito posto de observação. Foi quando o Botelho, um desses clientes que viram amigos, depois de frequentar muitas vezes o mesmo restaurante, conhecia de cor os nomes dos garçons, sempre andava só, mas semana passada estava acompanhado e hoje também, sentou-se logo na entrada, de longe ele levanta o braço para me cumprimentar, fiz o mesmo gesto em resposta, ele mais uma vez levanta o braço e me chama para a mesa, eu faço um gesto para que aguardasse, ele abre os braços bonachão, fico um pouco constrangido e olho para os lados, acho que ninguém observou nossa performance, para meu alento.

Cumprimentei mais uma vez o casal e sentei do lado esquerdo do Botelho, ele parecia mais alegre que os outros dias, perguntei pelos filhos que estiveram aqui na semana passada só para puxar assunto, a resposta foi que os meninos estavam morando na casa dos avós, não perguntei o por quê, afinal de contas não era do meu interesse, mas achei estranho porque até semana passada estava se divertindo com os filhos e a esposa, aqui mesmo no Shopping. A resposta fora seguida de um chute na canela, desferido pela esposa, por debaixo da mesa. Botelho levou a mão à tíbia com um sorriso no rosto meio sem graça, não entendi a razão da advertência, mas por precaução, mudei de assunto.

A mulher era elegante, tinha gestos finos, comia fazendo pausas entre um garfo e outro, mastigando lentamente, parecia fazer parte da música suave e lenta que se espalhava pelo salão. Havia tingido os cabelos para uma cor mais clara desde a última vez que estivera aqui, achei-a mais alta também, vira-a de longe, naquele dia não me aproximei da mesa, estava muito ocupado no restaurante, não tenho muita certeza, as mulheres sempre estão mudando a aparência, é comum se falar com uma morena hoje e no dia seguinte ela está loira. Tenho visto mulheres com cabelos vermelhos, amarelos, azuis em vários tons e tamanhos.

Depois de algum tempo de conversa notei que a mulher não falava muito, apenas sorria simpaticamente, tentei ser gentil ao elogiar os seus cabelos, dizendo que ela ficava muito bem de loira e que a cor estava muito em moda, arrependi-me logo em seguida, considerando um elogio barato, idiota da minha parte, mas para minha surpresa ela se mostrou interessada e perguntou desde quando eu a conhecia morena e se eu havia gostado. Imediatamente imaginei-me afundando em areia movediça, pedindo desesperadamente por socorro, o Botelho me olhou com olhos suplicantes, arregalados. Não entendi nada, ele ajeitou-se na cadeira e em seguida levantou-se rapidamente:

– Preciso ir ao banheiro.

Fiquei sentado olhando para a mulher, buscando na memória a resposta mais acertada, tentando consertar sei lá o quê, enquanto ela curvava os cotovelos sobre a mesa à espera de uma resposta, olhava bem fundo nos meus olhos como se quisesse ler meus pensamentos, aí percebi que realmente tinha algo errado na nossa conversa. O garçom se aproxima solenemente da mesa.

– Tem uma ligação para o senhor.

– Obrigado Silas, respondi já me levantando e pedindo licença à senhora.

– Você não vai me responder, insistiu ela.

– Volto já, não demoro, é só um telefonema, e saí completamente constrangido.

Dentro do escritório.

– Alô!

De dentro do banheiro uma voz nervosa responde.

– Aquela que está na mesa não é minha mulher é só uma “amiga”, você entende, para ela estou separado há quase um ano e não moro com os filhos.

O chão se abriu debaixo dos meus pés, não voltei mais para a mesa do Botelho e na semana seguinte ele me contou o resto da história, graças a Deus o abalo sísmico não foi suficiente para separar as placas tectônicas e o terremoto não teve maiores conseguências.

Leandro Dumont

11/11/2002

Leandro Dumont
Enviado por Leandro Dumont em 07/05/2021
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