Sol de praia e domingo curto


O e-mail é de ontem à noite: encomenda de uma crônica de domingo, para o sítio da Agência Carta Maior. No laço.

Tudo bem.

Mas não acordando na hora do almoço, com um sol de praia onde não há praia. Sol de praia sem praia passa mole dos quarenta no Jardim Carioca, onde moro.

Como não há praia? Mole deve estar é o cérebro do cronista. Ou não tem mais praia na Ilha? A Ilha do Governador deixou de ser uma ilha? Não, minha gente, não deixou — no entanto só quem mora próximo à orla é que percebe isso.

No logradouro onde fica o meu prédio sou um insulano do asfalto, cercado de outros prédios por todos os lados, à beira do complicadíssimo trânsito diuturno da Estrada do Galeão, e sob o efeito da mesma catatonia em face das granadas, tiroteios e balas perdidas que já tomaram conta da cidade e desta terra dos maracajás, um crime de lesa-paisagem, entre outros. Lesa-paisagem, sim. Aqui pegava bem era uma vida de janela, privilégio corriqueiro dos nossos mestres da crônica, no passado, mas quem vai encarar?

Um dia desses, uma ongueira do desarmamento, moradora do bairro vizinho, o Guarabu, veio pedir-me emprestado o Adeus às armas, de Hemingway, para fazer um cartaz sobre o último referendo, e ficou encantada com o janelão da minha sala de estar sozinho. Depois de beijar-me nas duas faces, correu na direção da bela fenestra, como dizem os trovadores. "Olha só, Luluca" — porra, me cagüetou! —, "daqui dá pra ver o Alto da Ericeira. É só esticar a cabeça." E esticou. Ploft! Dessa vez deu sorte, foi só uma cagada de pombo. Mas podia ter sido um teco do Morro do Dendê. Bonitona e vaidosa, habituada a fechar mais comércio do que traficante, ficou uma fera com o pombo. Se ela tivesse uma arma estou certo que mandava o referendo passear e dava um tiro no coitado. Estragar um penteado tão bonito...

Ficamos assim. O sol é mesmo de praia, e com boa vontade dá até para um mergulho na Praia da Bica. Eu é que estou em outra. Suco de uva, uns paradoxos de Chesterton para retemperar o angu-de-caroço petista dos últimos meses, e os canhões sem raiva nem incúria da bela 1812, de Tchaikovsky. Fui.

[27.10.2005]