Dizem por aí...

Dizem por aí que ela morreu dentro no carro, com os olhos esbugalhados e a boca aberta. A Camile estava lá, ao lado dela. A cabeça da falecida se encostou do ombro de Camile. Camile deu um pequeno grito assustador e depois chorou. Sabia que era tarde, que a sua mãe estava morta.

Dizem por aí que ela pensou em muitas coisas, assim como boa parte das pessoas. A mãe de Camile estava com 55 anos, tinha a idade dos meus país. Aliás, foi a única vez em que vi o meu pai chorar. É muito raro (quase um milagre) você ver o seu pai próprio chorar que nem uma criança.

Ela estava pensando em tirar algumas férias, curtir a vida e tudo mais. Era uma mulher muito direita, mas queria viver. Ficou muito tempo trabalhando como contadora. Ela tinha uma igreja, queria ser pastora. Tinha alguns sonhos.

Dizem que tiveram que grudar os lábios dela, para que não ficasse aberto. Os olhos? Mesma coisa, se não, a gente não ia conseguir ir pro funeral, inclusive a Camile.

Lembro que fui até a Camile. Ela estava perto no túmulo, segurando a mão fria de sua falecida mãe. Até então, ela estava silenciosa. Ela me viu entrar da sala. Eu a abracei. Deus... lembro que pensei que aquela mulher continuava linda! Estava com 35 anos, mas parecia uma adolescente, até mesmo quando está numa situação de luto, despida de vaidade e maquiagem.

Depois disso, ela não se segurou mais, ficou chorando em cima do meu ombro por um bom tempo. A minha camisa ficou suja de lágrimas e catarros.

Talvez seja terrível dizer isso, mas foi uma sensação muito boa.

Levei ela pra fora da sala, longe dos rituais e rezas. Ela nunca acreditou nesse tipo de coisa, assim como eu. Apenas obedeceu por causa da religião de sua mãe.

Preciso beber algo...

Disse ela, cabisbaixa, tentando fazer com que eu não olhasse pro seus olhos vermelhos. Ela também cobria o seu rosto com o seu cabelo preto e longo. A minha Camile sofria como uma personagem de tragédia grega, mas quem poderia julga-la?

Sim...tem uma cantina aqui, no final do corredor. Esse cemitério tem de tudo...

falei eu, meio bobo e impressionando. Era o cemitério de Vila Formosa.

Nicolas, só porque eu estou fudida, você não precisa ser tão bonzinho comigo. Eu não quero ir pra cantina.

Falou ela, ainda cabisbaixa. Ela apertou a minha mão esquerda. Ela estava com a mão fria, mas com o peito pegando fogo. Consegui dar uma olhada rápida do seu rosto. Branco como a neve, porém com os mesmos olhos vermelhos fortes. Era uma cena que vocês podem compreender.

Aonde quer ir então? Você disse que queria beber...

Disse eu, com uma voz fraca e rouca.

Sim...sim...mas esse cemitério...puta que pariu...parece um parque temático! Grande pra cacete e tudo mais. Essas malditas fileiras de túmulos e essas malditas arvores e esse maldito aroma de falsa paz.

Ela falava tudo isso, como uma voz frágil, mas determinante. Ela até falava a palavra "maldito" com certa suavidade e melancolia.

Nicolas, eu não quero beber café....eu quero uma dose de conhaque. Duas, três...sei lá quantas! Você é o único nesse funeral que não vai me julgar! Sei muito bem disso...

Ela parou de ficar cabisbaixa e olhou pra mim. Meus amigos, era um rosto pálido, juvenil, triste e belo. Ela sorriu, mas como uma forma de sinceridade sombria. De alguma forma, a gente sempre retornava a se encontrar ,pois tínhamos algumas coisas em comum. Alguns demônios para matar e coisas assim, acho que vocês sabem do que estou falando(leia a porra da minha obra).

Saímos naquele corredor cheio de salas de vários e vários funerais. Ela ainda segurava a minha mão gorda e voltou a ficar cabisbaixa, cobrindo o seu rosto com o seu cabelo preto e tudo mais. Depois que saímos, ficamos a mercê de vários túmulos do grande cemitério de vila Formosa. Tinha a saída bem a nossa frente, ou mais menos bem a nossa frente, pois tínhamos que subir numa pequena estrada de concreto que quase parece um monte. Subimos, ela estava silenciosa, eu também, pois não sabia o que dizer. Eu apenas olhei pros túmulos ao meu redor, os carrinhos carregando novos clientes e tudo mais. Um grande circo trágico, que é esse negocio de morrer e enterrar. Nunca soube dizer o que era pior: ficar num hospital ou ser comida para os vermes. Camile sempre soube disso, ela sempre teve esse tipo de pensamento também.

A gente conseguiu subir a maldita estrada, e vimos grande portão aberto. Saímos de lá, e pensávamos onde tinha um buteco. Camile não estava vaidosa, qualquer ninho de rato que servisse Domecq já estava de bom tamanho.

A nossa sorte é que tinha um bem em nossa frente, tínhamos que apenas atravessar a rua movimentada. Fizemos isso. Entramos no pequeno buteco. De fato, nada charmoso, mas nunca fui rígido.

Era um lugar quase rústico, pequeno, com apenas um balcão de madeira e uma mesinha de plástico da Skol, além de o lugar ter um cheiro de madeira velha e pinga sabor de canela. Ficamos em frente a balcão que tinha essa madeira velha, olhamos pro balconista, que estava fazendo omelete em seu pequeno e sujo forno. Ele percebeu a nossa presença, pois éramos os únicos a estarem naquele boteco.

Era um homem gordo e bigodudo, quase parecia um personagem de filme mexicano. Camile parecia estar mais calma, apesar de que os seus olhos ainda estarem vermelhos ,mas ela não queira mais soltar as malditas lágrimas da dor.

O homem foi até nós, perguntaram o que a gente queria.

Duas doses de Domecq, por favor.

Disse eu. O homem olhou pra Camile. Camile ficou indiferente ao olhar quase desconfiado do balconista. Mas o sujeito não falou nada, pois deve saber que tínhamos saído de um funeral. Ele pegou dois copos e encheu de Domecq. Eu paguei.

Camile olhou pra fora e pro portão do cemitério. Ela sabia que tinha que voltar lá e ver a mãe ser enterrada, depois que o pessoal da igreja terminasse a cantoria.

Ela quis pegar um a brisa naquela movimentada rua, saímos na porta do bar, com os nossos copos de conhaque. A gente viu que tinha uma mesinha de plástico (igualzinha que tinha dentro no buteco) ao lado da porta de entrada daquele lugar quase rústico. Tinha duas cadeiras. Nos sentamos, e ficamos lá, olhando pra nada, bebendo silenciosamente e lentamente.

Camile pegou o seu maço de Camel azul e ofereceu pra mim. Eu neguei. Ela sorriu timidamente, quase como uma colegial, e ascendeu o seu cigarro. Ela deu uma longa tragada e depois soprou aquela fumaça pro ar.

Ela voltou a olhar pra mim, com o mesmo sorriso de colegial.

Então você parou mesmo de fumar?

Perguntou ela, tragando mais uma vez.

Sim.

Disse eu, com a mesma voz rouca e fraca.

Bom...tá certo. Fumar faz mal pra saúde...

Ela deu mais uma tragada e soprou a fumaça lentamente.

Eu voltei no boteco, levando os nossos copos vazios e pedi mais duas doses de Domecq. Eu paguei de novo e deixei os dois copos da mesa.

Camile parecia que mal sentiu a minha presença quando voltei, mas tinha voltado a falar depois que bebeu o segundo copo.

Bom...idiotice isso também, né?

Falou ela, acompanhado de um riso timidamente nervoso.

O que?

Esse negócio de não fumar, não beber e tudo mais. Sabe, eu sempre discutia e brigava com a minha mãe. Éramos muito diferentes. Ela sempre foi uma crente, uma religiosa fervorosa e eu não. Eu sempre bebi e fumei. Minha mãe era saudável. Depois do trabalho, ela gostava de caminhar e tudo mais. Praticava esportes a beça...

Ela deu mais uma tragada. Eu bebi o meu copo de Domecq silenciosamente.

Depois disso, ela voltou a ficar silenciosa. Sorria pra mim de vez em quando. As vezes, eu achava que ela sorria só pra mostrar que está um pouquinho melhor, e as outras vezes ,achava que ela sorria por estar comigo, talvez seja os dois, ou talvez não( me sinto meio egoísta escrevendo isso agora).

Depois bateu uma pequena chuvinha, uma chuva bem fininha e tímida, quase que de repente. Estávamos tão alheios com aquele cenário que decidimos beber mais uma dose e voltar pro cemitério.

Camile jogou fora o cigarro, voltou a segurar a minha mão e atravessamos a rua.

Eu fiquei com ela até o fim do funeral. Quando jogaram terra em cima do túmulo da mãe dela. Camile parou de chorar, estava mais forte, mas claro, ainda triste. Ela sempre brigava e discutia com a sua mãe, mas a verdade é que a mãe crente era umas das poucas amigas que a Camile tinha. O que era triste também.

A última imagem? Bom, a chuva ficou mais forte. Tiveram que enterrar a coitada rapidamente. Saímos correndo, quase rindo em direção ao carro dela. Quando chegamos lá, ela me deu um beijo molhado da minha testa e agradeceu. Entrou no carro e mandou brasa. Eu voltei a ficar com os meus pais.

E agora? Bom, estou aqui, contando isso pra vocês. Tenho essa idiotice de ficar contando sobre a minha vida e algumas pessoas importantes pra mim. Isso devia ser guardado a sete chaves, mas sei lá...tive vontade de escrever.

Talvez a culpa seja do vinho barato que comprei...

CaiqueM
Enviado por CaiqueM em 02/05/2021
Reeditado em 02/05/2021
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