Crônicas Médicas - A cidade onde a COVID não chegou
Quando pedem para nós, na faculdade de medicina, estudarmos os determinantes sociais de saúde, com foco especial nas vulnerabilidades sociais, corremos logo para livros-textos e artigos científicos em busca da melhor informação possível. Lemos, lemos e lemos, muitos a contragosto, para cuspir informações e fazer com que a aula acabe mais rápido. Sim, é dessa forma que muitos alunos tratam os assuntos biopsicossociais no decorrer da faculdade e ainda se perguntam por que a medicina está tão desumanizada.
Enfim, voltando ao foco do texto, mergulhamos em páginas de informações para entender de vulnerabilidades, mas será que este é o melhor caminho? Algum aluno já pensou em vivenciar as realidades descritas nos artigos? Algum de nós já se deu ao trabalho de ir até comunidades carentes, conversar com seus moradores e observar o ambiente para entender, de fato, o que os pesquisadores colocam em suas pesquisas? Acredito que não seja grande o número de alunos a fazer isso por vontade própria.
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Era sábado de manhã e eu me reunia com outros sete jovens do Rotaract para fazermos a doação de 24 filtros de barro para duas comunidades carentes de Campo Grande. Dividimos os filtros nos carros e partimos, quase em carreata, para a entrega.
O caminho era longo. Saímos de um bairro bem estruturado, ruas largas e asfaltadas, esgoto, água tratada, casas com cerca-elétrica e condomínios, mas, de pouco em pouco, a paisagem foi se alterando. As grandes construções cederam espaço a casas mais simples, menos imponentes e não tão protegidas, até que chegamos à rodovia e a atravessamos.
Do lado de lá, era como se tivéssemos passado por um portal: de um lado, asfalto, casas de alvenaria, informação; do outro, ruas de terra, casas de tábua e um mundo completamente diferente, onde a vida não parou em decorrência da pandemia. Conforme passávamos com nossos carros, crianças com meião e chuteira voltando de um jogo de futebol, mercados abertos e lotados de pessoas sem máscara, vendedores ambulantes mostrando seus produtos em meio a uma multidão de rostos despreocupados. Era como se o vírus não tivesse chegado até lá ou, ao menos, as informações acerca dele.
Cada metro do caminho era fotografado em minha mente. Ali eu conseguia compreender, na totalidade, o conceito de vulnerabilidade social. De modo quase que automático, minha cabeça processava cada cena e comparava com os textos que havia lido e acreditava ter entendido. Ledo engano. A realidade percebida por meus olhos foi muito além daquela trazida pelos artigos que li, ou, ao menos, o choque de realidade me fez assimilar melhor as ideias.
Dirigimos por mais alguns minutos até chegarmos ao final da rua, um quarteirão marcado por casas baixas de tábua, próximas umas das outras, sem muita infraestrutura e habitadas pela comunidade indígena local. Descemos e fomos recebidos por um dos líderes comunitários, enquanto a curiosidade daquele povo fazia com que mais e mais pessoas se ajuntassem ao redor daquele pequeno pátio onde colocávamos os filtros doados.
Ali, alguns chegavam de máscaras, mas a grande maioria estava sem, uns esbanjando grandes sorrisos e outros um tanto tímidos. Fizemos nossa apresentação, ensinamos a montar os filtros e entregamos às famílias beneficiadas. Infelizmente, não conseguimos atender a todas, mas boa parte delas pode ter a qualidade de vida melhorada graças a esse projeto.
Depois da entrega, tiramos um tempo para conversar com aquele líder comunitário, uma das poucas pessoas instruídas naquele meio. Ele nos contou que recebe crianças em sua casa para ensinar música e, com o apoio de alguns professores voluntários, faz reforço escolar para os poucos que frequentam colégios. Também nos disse que são poucos ali que possuem trabalho formal e, para meu espanto, que uma boa parcela daquela população sequer fala o português.
Assim, ouvindo sobre suas necessidades, colocamo-nos à disposição para realizar mais parcerias com a comunidade, a fim de ajudar em seu desenvolvimento. Tenho certeza que mais projetos virão e, de pouco em pouco, levaremos, além de melhores estruturas, maior acesso à informação.
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Enquanto isso, de volta a minha casa, sentado em frente ao computador escrevendo este texto, penso nos privilégios que tenho quando comparado àquele povo. À distância de um clique, alcanço o mundo todo; eles, a menos de quinze quilômetros daqui e apesar de toda sua felicidade, parecem se encontrar a anos-luz de minha realidade, numa comunidade onde o vírus com certeza chegou, mas as informações sobre ele ainda não. Assim, enquanto milhares morrem por dia no Brasil, por lá, a pandemia parece não existir.