A VIDA, ESSE GOSTOSO VAZIO
À pergunta do provocador "O que é a vida?", o humorista responde que é um vazio. E tece breves, mas interessantes, considerações acerca desse vazio. A que mais me atrai é a de que tal descoberta ocorre, especialmente, àqueles que superam o estágio da religião. Não lembro as palavras exatas que ele empregou, mas a ideia é essa. Para minhas considerações, a seguir, usarei a expressão idade pós-religião.
Ao longo de sua trajetória, o homem experimentou diferentes idades, as quais podem se referir ao seu desenvolvimento físico, mental, intelectual e emocional; à sua capacidade de inventar ferramentas e métodos para a sobrevivência material e domínio da natureza; ou à sua própria evolução espiritual.
Depois de relativamente superar a idade mágica, a fase mitológica e boa parte das crenças politeístas, o homem se viu enredado na teia visguenta do monoteísmo abraâmico, um sistema engenhosamente organizado de domínio do homem pelo homem. Aqui, impera o poder do mais forte, do mais rico, do mais esperto, do mais engenhoso no plano das ideias e do discurso. Tanto isso é verdade, que a própria filosofia ocidental (ou pelo menos parte dela) se deixou apropriar por esse sistema. Sobretudo, a partir do Cristianismo, catapultado por poderosos romanos que, por ingenuidade ou conveniência, lhe caíram na rede. Esse sistema aniquila o indivíduo e, consequentemente, a parte da humanidade a ele submetida. Contamina e adoece, muito mais do que cura. Quando adentramos a história da Psicanálise, é inevitável pensarmos que essa ciência surgiu para, entre outras coisas, tentar amenizar os estragos que a referida religião tem provocado em nossa civilização.
Gostei da definição do humorista, de quem só lembro o primeiro nome, Daniel, porque nos permite tocar no assunto sem cair no niilismo pessimista de grande parte dos filósofos existencialistas. Tal vazio não anula a vida, mas a faz receptáculo para a nossa inventividade, nossas criações. Libertos das teias e peias do sistema, os que superam a idade da religião podem jogar fora as correntes e trancas da subserviência , as muletas de que se serviam em seus discursos e atitudes, e ancorar suas ações e invenções nos próprios valores e palavras. Por exemplo: temos todas as condições de nos dirigirmos a alguém que acaba de perder um ente querido, de maneira respeitosa e solidária, sem a bengala do "Deus o console"; de agradecer a boa colheita à natureza, que nos dá a terra fértil e o clima favorável, em vez do prosaico e nem sempre sincero "Graças a Deus", cacoetes que herdamos dessa cultura e que nos roubam a capacidade de nos expressarmos com a própria alma e palavras nossas.
Já ouvi que a vida é o intervalo (grande ou pequeno) entre o nascimento e a morte. Esse intervalo é o tal vazio, que deve ser preenchido com todas as cores existentes e inventáveis! Com festas, com a amizade, com o amor, com as artes todas, como a música e a poesia! Assim, não nos assusta o vazio nem nos incomoda a dúvida ou a certeza sobre se existe ou não um lugar para onde irmos depois da morte. Aos que alcançam a idade pós-religião, uma vida é suficiente.