A HOMENAGEM - História de dois nomes muito diferentes
Quando Modesto e Prisca decidiram deixar Mantova e virem “fare l’America”; depois de três meses no navio, aportaram no Brasil com três dos quatro filhos com que saíram da Itália, porque uma de suas filhinhas, Finetta, morreu durante a viagem e seu corpinho foi lançado ao Mar, como era tradição quando se morria a bordo. Então Guido, com quatro anos de idade, era o o mais novo dos irmãos que vinham da Itália, e Prisca, sua mãe, estava grávida.
Chegaram ao Brasil como imigrantes, e vinham em busca de Paz e condições para criarem os filhos que trouxeram com eles e quantos mais Deus lhes desse na nova Pátria.
Fixaram-se no Rio de Janeiro, onde nasceu sua filhinha concebida na Itália e nascida no Brasil, que recebeu também o nome de Finetta, para nunca se esquecerem da Finetta que havia ficado no Mar.
Muita luta, muito trabalho, mais quatro filhos que nasceram ali, e o tempo foi passando.
Já estavam a mais de catorze anos, no Brasil, e Guido, que veio com quatro anos, já estava na idade de prestar o Serviço Militar. A Primeira Guerra Mundial se alastrava pela Europa, e o Rei da Itália convocava todos os de nacionalidade italiana, para irem defender sua Pátria de origem.
É claro que as famílias dos jovens imigrantes não queriam aceitar que seus filhos deixassem o Brasil para embrenharem-se numa guerra. Porém houve casos em que, jovens que vieram para a América e não compareceram ao Serviço Militar na Itália, foram tidos como desertores, perderam a cidadania italiana, e ainda corriam o risco de serem presos caso voltassem para a Itália. Alie-se a isso os brios do jovem Guido, e ele decidiu que jamais poderia deixar de atender ao chamado da sua Pátria.
Não faltaram pedidos de sua dedicada mãe entre outros membros da família, para que ele, fizesse o Serviço Militar no Brasil, porém o Sangue Italiano pulsava em suas veias, e aquele filho de Mantova, jamais deixaria de servir ao Rei da Itália, ainda mais quando se encontrava em Guerra!
Assim, quando ele comunicou à família que estaria embarcando para a Europa para defender a Itália, sua mãe não teve outra alternativa senão sentir um tremendo Orgulho da coragem do filho Guido, pedir a proteção de Deus, o abençoar, e entre muitas lágrimas e preocupações, vê-lo partir, sem saber se o veria voltar...
Foram muitas as cartas trocadas durante o tempo em que ele esteve fora do Brasil, e como as correspondências demoravam muito tempo para serem entregues e respondidas; iam escrevendo cartas quase que todos os dias, contando tudo o que se passava, para entregarem ao Correio na data em que as correspondências fossem embarcadas para a Europa.
A aflição de receber uma terrível notícia em lugar das saudosas palavras do filho, tirava o sono de sua mãe, sem uma noite de paz, até que o Carteiro lhe entregasse os vários envelopes com a letra do filho querido, contando o que se passava com ele em meio à horrenda guerra...
Quando recebia a esperada correspondência de sua mãe, Guido lia muitas e muitas vezes as cartas com notícias da família, e as colecionava em uma carteira de pele de animal, que ele carregava sob a camiseta, junto ao corpo debaixo da grossa farda. Era uma maneira de sentir o calor de sua querida Mãe junto ao seu peito, naquelas batalhas durante o inclemente inverno europeu..
Naquele dia a batalha estava terrível, o inimigo, cada vez mais próximo e Guido, na linha de frente, lutava cobrindo a retaguarda do batalhão que avançava.
Estava com um companheiro numa trincheira. As balas do inimigo zuniam sobre suas cabeças como um enxame de marimbondos procurando seus corpos jovens para saciar sua sanha de sangue e morte. Guido sentiu uma dor em seu peito como se um punhal incandescente entrasse em seu corpo abaixo da clavícula esquerda e o trespassasse saindo pelas costas acima da omoplata, enquanto ouviu seu companheiro dar um grito e cair, Guido sentia uma dor que lhe atravessava o peito e as costas, pouco acima do coração. Sangrava, mas estava bem, enquanto que seu companheiro agonizava a seus pés... O projétil do fuzil inimigo que atingiu o peito de Guido, desviou ao atravessar a carteira com as cartas de sua mãe, perfurando todas as cartas, o fundo da carteira, e a pele das costas dele, sem atingir nenhum órgão vital, mas com potencia ainda, para entrar no coração de seu amigo, que estava atrás dele, e matá-lo instantaneamente.
Certamente as preces de Prisca e sua energia de Mãe, que estavam em todas aquelas cartas cheias de saudades, salvaram a vida de seu filho querido!
Alguns dias de hospital e estava pronto para voltar à batalha, daquela Guerra, que parecia não ter fim.
Os Soldados italianos lutavam num campo gelado, coberto pela neve.
O frio era terrível.
O pavor da Morte gelava a Alma.
O Batalhão de frente estava cercado.
Encurralado numa região já totalmente destruída pelas bombas inimigas. Depois da ordem de “SALVEM-SE QUEM PUDER!!!” cada um procurou se abrigar como pôde.
A balbúrdia era geral, rajadas de tiros certeiros iam dizimando o que sobrara da tropa desbaratada. Gritos e corpos desabando no estertor da morte. Era cada um por si.
Correndo, pulando por cima dos corpos de companheiros mortos, Guido entrou por uma fresta no muro de um cemitério em ruínas, e procurou abrigo num túmulo cuja lápide quebrada permitia que um corpo passasse pelo buraco, assim, rolou para dentro do sepulcro.
Ali, sentindo o Cheiro da Morte literalmente, em meio a insetos que se agitavam assustados pela invasão daquele ser vivo naquele ambiente de morte, Guido ficou paralisado, só vendo os inimigos se aproximando e finalmente passando por cima dos túmulos e indo embora em sua saga destruidora.
Os tiros foram se distanciando, embora recrudescessem periodicamente na ânsia de certificar-se de que os corpos de todos aqueles jovens que jaziam inertes, numa luta que não era sua, estivessem realmente sem vida. Atiravam nos mortos!
Os gritos de comando, misturados aos de dor e pavor foram-se perdendo no ar gelado.
Muito tempo depois, o Silêncio... Um silêncio sepulcral tomou conta de tudo... Até seu coração batia em silêncio por medo de ser ouvido e descoberto ali...
Quando certificou-se de que ninguém mais voltaria para matá-lo, Guido saiu do esconderijo e quis saber de quem seria aquele jazigo que lhe salvara a vida.
Em meio aos destroços da campa haviam pedaços de placas com palavras, possivelmente nomes ou orações em língua estrangeira. Guido anotou duas, que lhe pareceram ser os nomes dos ali sepultados: ODERAGY e AVILUX, e fez uma promessa: Se ele saísse vivo daquela guerra, voltasse ao seio de sua família no Brasil e tivesse filhos, colocaria esses nomes neles.
E assim o fez.
A Guerra acabou. Ele voltou ao Brasil onde sua Mãe pode abraçá-lo e ele pode mostrar a carteira e as cartas perfuradas pela bala de fuzil do inimigo, que por muito pouco, e graças a elas, não levou a sua vida.
Alguns anos depois, Guido conheceu a jovem Julieta, com quem se casou e teve filhos. Ao nascer o primeiro filho homem, colocou o nome de ODERAGY, e quando nasceu outro menino, colocou o nome de AVILUS.
Oderagy casou-se com Stella e teve dois filhos, Marcello e Yberê.
Marcello, o neto de Guido, filho de Oderagy e sobrinho de Avilus, estudioso de Linguística, resolveu descobrir o que significariam nomes tão “sui generis”, e concluiu que “Oderagy“ poderia ser o nome de quem estivesse sepultado ali, e que “Avilux” seria uma expressão semelhante a “HAJA LUZ” (que o sepultado naquele túmulo “tivesse Luz”).
Seja como for, Guido demonstrou sua gratidão àquele morto desconhecido que “tão amistosamente” o recebeu em sua última morada...
E a homenagem foi feita!
Oderagy faleceu perto faltando alguns dias para completar 90 anos de idade.
Avilus, hoje bem próximo disso, ainda espalha pelo mundo dos vivos a luz de seus olhos extremamente claros e azuis, como o céu gelado do País distante, naquele longínquo ano de 1918.....