ENGRAXATE APRENDIZ – ANOS 50

Em qualquer região do planeta, em diversas épocas, as crianças eram convocadas a trabalhar duro, incentivadas (?) pelos familiares ou responsáveis (nem sempre legais). Dura realidade. Nos anos 50, morando em um bairro às margens do Ribeirão dos Meninos, distante do Centro de Santo André, na região do Grande ABC paulista, quando não estava na escola eu me esforçava para ajudar minha mãe. Ajudava a cuidar da pequena horta, recolhia e enterrava o lixo, tirava as roupas do varal, era o encarregado de buscar leite e pão logo ao amanhecer e de carregar sacolas nos dias de feira-livre. Eu não fui obrigado, mas quanto tinha uns 10 anos tomei a iniciativa de montar uma carriola com materiais recolhidos no lixo, para catar esterco e oferecer nas casas que possuíam bem cuidados jardins. Eu não tinha noção do valor monetário e me contentava com algumas moedas, à critério “do freguês”. Algumas donas de casa, condoídas com minha magreza, me presenteavam com bolachas, frutas e lanches. Em pouco tempo montei minha primeira Caixa de Engraxate, com um caixote maçãs importadas e ferramentas do Japonês da Quitanda do meu bairro (ele supervisionou, fez sugestões, mas não colocou as mãos). O dono da Sapataria me doou escovas e três latinhas de graxa de sapatos (preto, marrom e incolor) já bem usadas e ensinou didaticamente a "arte de engraxar". Fui oferecer ao japonês da Quitanda a primeira engraxada (grátis), mas ele fez questão de pagar. Em seguida fui ao Salão de Barbeiro e ofereci ao dono uma engraxada grátis (ele cortava meus cabelos e não cobrava, eu retribuía varrendo o salão, sem que ele me obrigasse). Pois ele fez questão de pagar. Sem perceber, eu havia criado o primeiro "Vai graxa, Dotô?" DELIVERY!!!! Animado, percorri outros estabelecimentos comerciais do bairro e ao final do dia eu já tinha o suficiente para comprar novas e reluzentes latinhas de graxa Nugget, nas cores disponíveis. A compra foi na Sapataria do "Seo Dé". Eu até tremia de emoção, antevendo o momento de voltar para casa e entregar o dinheiro para minha mãe. Antes de retornar para casa, passei na Padaria do “Seo Mané”, engraxei mais dois pares do dono e comprei pães, manteiga, mortadela e leite. O retorno ao lar foi triunfal, a Caixa de Engraxate pendurada nos ombros, as sacolas com os alimentos nas mãos, o sorriso triunfante. O coração foi acelerando à medida que eu me aproximava de casa. Ao entrar, mal consegui abraçar minha mãe, desabei a chorar, balbuciando explicações entre soluços. Meus Deus, como aquele abraço e o olhar amoroso da minha mãe foram reconfortantes. Entre carinhos e palavras de conforto, usou a água quente do tacho (havia fogão artesanal à lenha, no telheiro improvisado do lado de fora), me levou para o banheiro e deu aquele banho de canequinha. Seco e agasalhado, sorvi o delicioso chá de hortelã (tínhamos uma pequena horta no quintal, onde aprendi a semear, regar) e saboreei o pão francês com mortadela. Naquele momento descobri a plenitude, a sensação de “realizado”.

Juares de Marcos Jardim - Santo André / São Paulo – SP.

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Juares de Marcos Jardim
Enviado por Juares de Marcos Jardim em 29/04/2021
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