A espiritualidade na pré-história
A pré-história humana é um período da história cientificamente nebuloso e cheio de pontos cegos. Estudar os primeiros ancestrais primatas com características humanas foi e é um grande desafio arqueológico. Podemos afirmar, usando do recurso do neologismo linguístico, que estamos ainda na “pré-história” da ciência da pré-história humana.
Pouco se sabe do período mais longo de existência humana. É tão longo o tempo em que ficamos neste período pré-histórico que costumo explicar didaticamente da seguinte maneira: vamos pensar que toda a história humana, dos primeiros ancestrais humanos até os dias de hoje, como se fosse um filme de duração de uma hora. Então quando estiver faltando quinze segundos para terminar este filme significa que saímos da pré-história. Isso mesmo, os últimos quinze segundos do filme é tudo o que conhecemos como história. No entanto, os cinquenta e nove minutos e quarenta e cinco segundos é o tempo de vida humana na pré-história. Portanto, nós humanos passamos grande parte de nossa jornada da vida neste longuíssimo tempo que chamamos de pré-história.
De forma mais resumida podemos afirmar que a pré-história humana foi ontem. Por isso, ela nos perturba fisicamente (o corpo) e espiritualmente (a consciência). Não vou conjecturar, nesta crônica, sobre as perturbações físicas do corpo, mas sim, as perturbações espirituais daquela longa época que parece ainda muito presente em nosso presente momento. Vou conceituar a palavra “espiritualidade” fora da tradição religiosa institucionalizada. Estou consciente do anacronismo linguístico de querer compreender a vivência do ser humano da pré-história com recursos verbais da história atual.
Vamos procurar entender a espiritualidade da pré-história como se fosse um certo tipo de despertar da consciência daqueles nossos ancestrais. Mas que tipo de consciência? A consciência da fragilidade da vida, seu estado provisório e instável; a sensação de impermanência constante em tudo que existia na vida destes primeiros humanos. Estes humanos da pré-história vão tomando consciência que são criaturas provisórias no próprio mundo em que vivem. A morte espreita a vida de todos o tempo todo.
A "consciência da morte" parece ter despertados neles a "valorização da vida". A morte, a perda, a penúria da vida promove o desenlace da espiritualidade. Ela, a espiritualidade, parece nascer do despertar de uma "consciência trágica" de que a vida não é segura, a rotina na natureza é impossível, tudo acontece de forma cega, ao jogo do acaso; ou mais precisamente aquilo que os filósofos chamam de contingências.
Sendo assim, os ritos animistas de adoração aos elementos da natureza se misturavam a existência de seres fantasmagóricos nas brumas de uma natureza ainda desconhecida. Ela, a natureza, era vista como algo muito poderosa e assustadora. Toda a vida na natureza parecia ser esmagada pelo destino de suas forças incompreensíveis. Ainda hoje, no tempo presente e curtíssimo da nossa história, parece que carregamos de forma inconsciente aquela antiga espiritualidade ancestral da experiência longuíssima da pré-história humana.
Estou convencido que as espiritualidades das religiões institucionalizadas do nosso presente histórico, não deixa de ser o reflexo e o desdobramento daquela "consciência trágica" despertada por aqueles antigos ancestrais da pré-história. Quando se trata de uma "consciência trágica" que envolve o "medo da morte", a espiritualidade humana deve ser entendida numa perspectiva de longa duração em que aqueles longos tempos da pré-história ainda estão presente em nosso tempo.