A menina da praia
Ela nasceu em Tramandaí e passou a infância na beira da praia, ajudando o pai nas pescarias, no inverno, e trabalhando com a mãe no quiosque de venda de lanches, quando a praia ficava lotada no verão. Gostava de estudar e carregava dentro do seu coração o sonho de ser médica. Também adorava dançar. E foi exatamente nos bailes caseiros que ela começou a notar que os coleguinhas preferiam as outras meninas. Ela sempre ficava “esquentando o banco” por um bom tempo. O apelido de “gordinha” serviu para deixar a garota irritada. Mas serviu também para uma decisão: precisava emagrecer de qualquer maneira, pois, aos 13 anos de idade, até parecia uma daquelas baleias que apareciam no meio do mar. Precisava mudar.
Uma coleguinha receitou um “chá milagroso”, mistura de diversas ervas conhecidas com uma outra erva, mais forte, chamada cofrei. Ficou por quase um ano tomando aquele chá (escondido dos pais, é claro). E começou mesmo a emagrecer rapidamente. Mas junto com a magreza surgiu uma fraqueza nas pernas. Em pouco tempo já nem conseguia caminhar. Apavorados, sem dinheiro e sem cobertura de um plano de saúde, os pais procuraram socorro em Porto Alegre. Após perambularem por vários hospitais, serem atendidos por diversos médicos, os dois escutaram o diagnóstico terrível: a filha estava com câncer na espinha. Não voltaria a caminhar e teria pouco tempo de vida...
O casal sentiu o chão se abrir. Ainda ficaram por vários dias em Porto Alegre, chegando a dormir em bancos de praça por causa da falta de dinheiro. Quando os guardas deixavam, dormiam no saguão do hospital. Passavam fome e frio. Mas estavam pertinho da menina, que continuava emagrecendo. Na primeira melhora, com alta hospitalar, levaram a filha de volta para Tramandaí. Se não existia possibilidade de cura, ficariam mais perto dos vizinhos e dos amigos. Na praia a vida era mais calma e os “pilas” não sumiam tão rapidamente do bolso. E a garota começou a se adaptar, numa cadeira de rodas, iniciando uma nova vida. Seus olhos castanhos brilhavam quando falava em melhorar, voltar a estudar e cursar Medicina. Sonhava também participar dos bailes na vizinhança. Mas as suas pernas não queriam mais dançar...
Por cerca de um ano, enfrentou aquela agonia. Era muito teimosa: não gostava de ficar parada em casa. Muitas vezes, quando a mãe retornava do trabalho, ela estava lavando a casa ou arrumando a cozinha, se arrastando pelo chão. Fazia de tudo para não se entregar para a doença (não sabia que estava condenada). E até começou a planejar a sua festa de 15 anos. Queria um vestido branco, bem comprido, que tapasse a cadeira de rodas. Queria que o pai entrasse com ela no salão, mesmo sabendo que não poderia dançar a valsa. Queria todos os seus amigos em volta, para cantar com eles, como fazia nas festinhas da escola...
Poucos dias antes do seu aniversário, foi ficando cada vez mais fraca. Quase nem saia da cama. Pouco conversava. Num sábado de sol, porém, acordou disposta e pediu para dar uma volta na beira da praia. Com a cadeira de rodas empurrada pela mãe, deixou o verde do mar invadir os seus olhos castanhos. Ficou por longo tempo olhando os navios atracados na plataforma da Petrobras. Espantou as gaivotas, atirando punhados de areia. Antes de voltar, deixou as ondas beijarem os seus pés, fazendo as rodas da cadeira atolar na areia. Voltou para casa muito cansada, mas com um sorriso nos lábios. Foi a sua despedida do mundo que tanto adorava. Na hora de dormir, pediu para a colocarem o vestido branco (comprado para os 15 anos) em cima da cama. Depois de dar um “boa noite” para toda a família, descansou. Sua vida terminou antes do sol nascer novamente. Morreu dormindo, sem um gemido, sem uma queixa. Partiu para o infinito poucos dias antes da sua festa. Seus pais entenderam aquela partida: certamente ela resolvera realizar no céu o seu baile de debutante..