A RATOEIRA

Domingos eram dias de encontro de familia na casa de dona Izaura e Sr.José, meus avós maternos.
Minha mãe e as outras cinco tias, devidamente acompanhadas de seus "angelicais" rebentos reuniam-se para tardes de muita animação, prosas e, claro, comilança.
Filho único (não paparicado, é bom que se diga) era eu um dos "angelicais" a juntar-me a quase duas dezenas de outros graciosos (as) anjinhos(as).
Vovó nos cobria de beijos e abraços enquanto vovô, não embarcava na onda, mostrando-se meio sério e carrancudo.
Seu olhar "43", não sei porque razão, direcionava-se feito um facho à minha figura.
Não sei se era implicância com o coque cheirando a sabonete "Eucalol" com que dona Hilda me engomava, com minhas calças curtas presas à suspensório ou, talvez, quem sabe...Pelas diversas vezes em que liberei os seus amados galos de briga, prendi os bezerros pelo rabo ou subi no caquizeiro e derrubei uma boa leva de seus caquis sangue de boi antes da maturação, dentre outras amenidades do gênero.
Por vezes, em minhas noites insones, fico ruminando os porquês e juro que devia mesmo ser implicância com o meu coque besuntado e cheiroso.
Mas, pelo sim, pelo não, lá se vão uns 61 aninhos e acredito que se hoje ele ainda existisse eu lhe ganharia com uma boa lábia.
Vamos a um daqueles domingos quase apagados pelos anos.
O blá,blá,blá correndo solto na varanda e nós, a netarada, correndo feito cabritos pelos potreiros de dona Izaura.
Já haviamos dado algumas aprontadas, contornado algumas pequenas briguinhas, se emporcalhado nas águas barrentas da sanga e, finalmente, uma pausa para um ligeiro descanso no paiol dos guardados de seu José.
Aquilo mais parecia um museu, dado à infinidade de quinquilharias empilhadas pelas prateleiras.
Já havíamos recusado dois chamados de vovó para o farto café da tarde.Afinal o fuça-fuça pelas prateleiras estava genial!
Um bule velho aqui, uma panela de ferro acolá, alguns livros de vovó, um urinol ainda sem uso,enfim...
Sueli, à quem chamávamos de "Suêla", era uma das belas filhas de tia Nena. O que possuía de beleza era proporcional à quantidade de travessuras que fluíam de sua cabecinha.Era inteligente e gostava de nos ensinar o funcionamento das coisas.
Exercia um certo fascínio de mestra (o que veio a ser na idade adulta) e nós ficávamos prestando atenção aos detalhes de seus ensinamentos.
Numa mesa abandonada no canto do paiol, uma ratoeira.
Enorme ! Aquilo parecia armadilha para matar raposa. A isca era um couro de toucinho defumado preso vigorosamente pelas mãos de seu José.
Veio a explicação do funcionamento:
-Olha ! Uma ratoeira ! Proferiu a mestra Suêla.
Nos aproximamos da mesa, enquanto ela demonstrava a "utilidade" do artefato.Seus dedos pareciam patinhas enquanto ela nos demonstrava como os ratinhos aproximavam-se daquela forca.
-Eles sentem o cheiro e atraídos, vão indo...vão indo...
[ Os dedinhos da prima, a caminho da pancada ]
-E quando vão pegar o toucinho, a ratoeira desarma e.....
Buahhhhhhhh!!!!!! desarmou sobre os dedos da dita cuja.
Pensem num escândalo ! Suêla saiu berrando em disparada para o fundo do potreiro.Juntos e berrando também, eu e os demais a acompanhamos. Suêla gritava d e dor, tentava sacudir a mão e quase não conseguia.
Vovó , minha mãe e as demais tias, juntaram-se ao bando de alucinados, gritando e sem saber o que estava acontecendo.
Depois de certo tempo, encurralamos a "prima ratazana" num canto do quintal e só aí fora descoberta a razão d e tamanho alarido.
Fez-se um escândalo mas ninguém encorajou-se a ajuda-la desvencilhar-se do aparato.
Subimos ao casarão, onde vovô José, com ares de serenidade à tudo assistia.
[ Lembrava a figura d e Pôncio Pilatos ]
Na maior calma, desarmou a ratoeira e Suela pode abanar a mão com os dedos roxos feito beterraba.
Claro que seu José não perderia a oportunidade para desdenhar de nossa aflição.
-Isso é o que dá ! Mexer em coisas que não lhe pertencem.Agora puderam ver como um rato sofre !
Viu bem ? Seu "Tute" (era assim que me chamavam) quem mete a mão nas "ratoeiras", um dia pode se estrepar.
[ Juro que não entendi a indireta ]
Suêla, hoje com a minha idade, é pedagoga aposentada.Dizem as más línguas que ela odeia ratoeiras.

PS.Suêla é a primeira à esquerda, ao meu lado , na noite de lançamento de meu livro. A outra é Ivete, sua irmã mais nova, muito criança ainda quando do episódio.

      https://www.facebook.com/jgomesteixeira