A minha segunda avó
Aquela notícia roubara-me o ar.
Por um segundo, lembrei-me de tudo. Dos seus olhos, do seu rosto já um pouco envelhecido, das suas roupas sempre tão bonitas, dos lenços que você usava no cabelo, das suas bolsas enormes. Arrisco dizer, minha avó, que pude até mesmo ouvir sua voz. “Fernandinha”, “minha linda”, “minha netinha” e as tantas formas carinhosas que você usava para me chamar.
A verdade é que eu não era sua neta mas também era verdade que esse detalhe, coisa da biologia, nunca nos fez diferença. Nós nos escolhemos. Lembro do dia em que experimentei essa dor pela primeira vez: minha querida avó Zita, meu anjo da guarda, partira e estávamos nós duas em meu quarto. Meus pais saíram para tomar as providências que eu, à época criança, não fazia ideia que precisavam ser tomadas e você me abraçou, com todo o seu coração. Lembro de chorar em seu abraço e de sentir que ali estava minha avó emprestada, escolhida, tão amada.
A sua vinda alegrou nossa família: uma cozinheira, de mão cheia, para os finais de semana em nossa nova casa. Mas a verdade é que a senhora fora muito mais do que isso. Lembro de a ouvir cantarolar pela cozinha, enquanto preparava as refeições: “essa é a minha terapia, Fernandinha”. E eu, tão criança, a observava curiosa: de onde vinha aquela paz? Aquela serenidade? Aquela calma?
Hoje, quando recebemos a notícia, vi meu pai chorar. Enquanto nos abraçávamos, o ouvi dizer que eu não deveria ficar triste, afinal de contas, um anjo passara em nossas vidas. Um anjo.... um anjo que, sorte a nossa, pude chamar de “minha vozinha”, que pude dizer tantas vezes que amava! Um anjo que pude homenagear no meu convite de formatura e convidar para ser minha madrinha de crisma. Um anjo que chamei de “vó”.
Hoje, senti a tristeza da sua passagem tomar todo o meu corpo e me recusei a acreditar. “Ela morreu mesmo, papai?” Era tudo que sabia dizer. Parecia impossível parar de chorar.
Fechei os olhos e pedi para que minha avó Zita lhe recebesse.
De repente, lembrei-me das tantas vezes que lhe pedi um abraço, um conselho, um amparo. Você sempre esteve lá, minha avó. Lembrei-me das nossas conversas, das suas histórias, da nossa amizade. Revirando meu telefone, escutei seus áudios no WhatsApp e, por alguns instantes, fui novamente sua netinha, sua Fernandinha. Lembrei de como desligávamos o telefone: “Se Deus quiser tudo vai ficar bem”, eu dizia. “E ele quer, minha linda.” Você me respondia.
A escutei dizendo que acreditava em mim, que tudo iria dar certo, que eu seria capaz. A escutei dizer que me amava. Que eu era sua neta, que você iria sair dessa e que nos veríamos de novo. Que você se orgulhava da minha força de vontade, que “ninguém era estudiosa como eu”, que você só queria me ver feliz, que meu namorado era um verdadeiro príncipe encantado (mas que alegria lembrar que ele a conheceu!).
A verdade, minha avó, é que a senhora estava doente e, de tão forte, não nos deixava lembrar disso. Há alguns anos, você vinha enfrentando uma das suas maiores batalhas: sempre com a cabeça erguida, com bom ânimo, cantarolando um samba canção. Mas já não era fácil ser tão forte...ainda que a senhora carregasse consigo a paz que tanto admiro.
Sei que, hoje, você acordou bem. Sei que aquela dor que tanto a fez sofrer já é passado e a vejo, com os olhos fechados, através do meu coração: sorridente, caminhando para todos os cantos da sua nova casa, com a perna curada! Ao seu lado, estão os dois maridos que a vida teimou em levar, seus pais tão lembrados, sua querida irmã e mais os tantos outros amigos que a esperavam retornar. A vejo, minha vó, nos braços do Senhor, com o semblante sereno que lhe era tão característico.
Independentemente de toda a minha dor, sei que o céu esperava a sua chegada e que, em tempos tão difíceis, os anjos já não podem habitar a terra. Você não pertencia a esse mundo, Dona Neusa... minha avó emprestada, nosso anjo da guarda!
Imaginei -lhe junto de minha avó Zita; minhas avós tão queridas que agora irão me amar lá de cima.
Quis lhe agradecer, lhe contar tudo, lhe abraçar! Quis lhe ouvir dizer, por uma última vez: “se Deus quiser”.... “e ele quer”.
Te amo, minha avó Neusa! Nessa e nas nossas tantas outras vidas.