O Candidato

Caíra como uma bomba a notícia da intenção do padre em concorrer às eleições naquele ano. Da incredulidade à quase certeza, muitos foram os comentários. Uns contra, outros a favor, ainda outros, mais elucidados, a questionar a legalidade de um ministro de Cristo concorrer.

Todavia, para que não se levantassem especulações, que poderiam complicar a vida ao candidato, logo uma voz, que ninguém sabia de quem, garantia a bênção do senhor Bispo. Por conseguinte, tudo em paz entre política e igreja.

Os que criticavam entendiam que um padre se deveria concentrar apenas e só no seu rebanho, conduzindo o melhor que pudesse aquela cambada de hereges no caminho do Senhor. Porém, era tarefa difícil, na opinião de outros, o senhor prior fazia melhor que podia, subindo muitas vezes ao púlpito, para melhor ser visto e ouvido, clamar contra a concorrência da taverna do Arnaldo, que desviava da igreja, tantos pecadores.

Gente rude, mais amiga de venerar Baco do que que se ajoelhar, para rezar e cantar salmos. Porém, não se pense que grande parte daquele povo era desprovido de qualquer sentimento cristão. Bem longe disso, principalmente quando cabelo desertava, e ou numa atitude racista, os brancos substituíam-se aos pretos, como arautos, de que o fim estava para breve. Assim, fazendo das tripas coração, lá iam ganhando forças para se arrojarem direitinhos ao templo, fechando os olhos à tentação da escancarada porta da taberna.

Agora sim, era tempo de esquecer as volúpias terrenas e tentar granjear um lugar, ainda que modesto, no céu. Generosos como nunca, as caixas das esmolas todas levavam o seu tostão. Mesmo a daquele santo de que não conheciam o nome, mas todos não eram demais, desde que fossem santos.

Era hora de ajoelhar aos pés daquele que tanto criticara, desfiando tertúlias inconfessáveis, mas se queria ser absolvido teriam que ser ditas. Algumas, meio arrastadas e gaguejadas com voz sumida no falar para não ser percebido, mas o vigário era tarimbeiro, e como fingisse não compreender fazia-o repetir. Depois seguia-se os conselhos para não se fiar nas promessas dos falsos profetas, de lobos disfarçados em pele de cordeiro, numa alusão ao doutor Ramalho, que administrava a vila a seu belo prazer.

Submissos, tudo ouviam citando o credo e prometendo não voltar a pecar. A penitência resumia-se a uns quantos padres-nossos, umas ave-marias e não esquecer umas esmolas pelas caixas espalhadas na igreja, para remissão dos pecados.

O padre Afonso sorria ao ver que uma a uma as suas ovelhas tresmalha-das regressavam à sombra protectora da Madre-Igreja. E que no confessionário humildemente não reclamavam da penitência, a fim de terem reservado o seu cantinho no paraíso, embora lá no seu fundo, conhecedor das fraquezas humanas, entendia que poucos seriam os que passariam no crivo do purgatório.

De alma limpa, regressavam prontos a comungar, e orgulhosamente olhavam de frente aquele antro do pecado, culpado de muitas cirroses e não menos desavenças, culpadas de uma ou outra cicatriz que para os netos eram descritas, orgulhosamente, como combates corpo a corpo nas guerrilhas do Ultramar.

O doutor Ramalho passou de incrédulo a preocupado, perante a prosápia do homem da sotaina. É que o bicho, para além da posição privilegiada de poder perdoar os pecados, tinha na mente todos os podres de quem se ajoelhava a seus pés em confissão.

Um trafulha é o que era, ou ele não o conhecesse como a palma da mão. Não da igreja que pouco frequentava, a não ser quando convidado para padrinho de baptismo de quase meia aldeia, mas no convívio no salão paroquial, entre os notáveis da terra, ou em casa do professor a jogar à sueca. Aí, sem títulos nem posições, eram todos iguais. Sobressaltando a esposa do professor, na sala ao lado, com murros na mesa sempre o jogo estava renhido ou o padre era apanhado a fazer alguma renúncia com as cartas. Para além de segredos inconfessáveis que arrotava, quando a garrafa do conhaque, noite dentro, ia diminuindo de conteúdo.

Tirando a batina, até era um companheirão, pelo menos em tertúlias, com o grupo restrito de amigos, desabafando que quando era mais novo, escondia cartas de amor, de uma certa senhora, entre as páginas do breviário.

- Enfim, sabem como é; a carne é fraca!

Era muito conceituado o doutor Ramalho na Diocese, desde que tratara da mãe do senhor Bispo. E temendo perder as eleições deve ter “soprado” qualquer coisa ao ouvido de sua Excelência Reverendíssima, para dois dias antes, o padre Afonso desistir de concorrer, mas para que a derrota não fosse total, a taberna do Arnaldo teve que mudar para uma rua fora da rota da igreja. Ordens do presidente do Município; o doutor Ramalho.

Lorde
Enviado por Lorde em 25/04/2021
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