O tempo & eu
Quando eu tinha seis anos, meu primeiro dente caiu, me lembro com clareza, foi em uma noite de domingo, eu já estava pronto para dormir na casa da minha avó, ela já estava deitada e eu ainda estava assistindo tv na sala. Já não me lembro do contexto da queda, se mordi algo mais consistente ou se apenas caiu, mas me lembro da primeira coisa que senti quando aquele dente caiu: medo. Mesmo que eu não me recorde de alguém ter me dito que aqueles dentinhos, em algum momento iriam amolecer e cair, para mim, parecia comum; o medo que senti foi por pensar no que os outros iriam pensar de mim. O que a vovó e a mamãe iriam achar? Elas iriam brigar comigo, acho que pensei nisso. Por que? Porque um pedaço meu havia acabado de cair e eu não estava mais completo. Antes de dormir, apenas joguei aquele dente no chão, como quem decide não se importar com aquilo que não vê, na manhã seguinte, minha avó achou o mini dente ao acaso, quando pisou nele, ligou para minha mãe, que ao que consta, estava num mercado e começou a chorar de emoção. Foi um medo bobo.
Essa história voltou à minha mente outro dia, se eu não estivesse estudando a psicanálise Freudiana, poderia dizer que foi ao acaso, mas não foi. O meu inconsciente elevou essa história ao status de consciente, porque estou me formando. O tempo costuma ser cruel com aqueles que não o respeitam, e eu não o respeitei ao longo desses anos, primeiro, desejei que ele não passasse e eu ficasse estático naquele momento de prazer das descobertas, depois, quis que ele acelerasse de uma vez e me conduzisse ao fim; agora, que de fato estou no fim e quero, de algum modo aproveitar cada sensação desse momento, ele corre de forma desenfreada, me lançando, a cada dia, mais para frente, rumo a um futuro que eu não sei como vai funcionar.
Eu já escrevi sobre esses momentos finais, mas a cada trabalho entregue, a cada discussão importante no grupo dos amigos que fiz, a cada troca de mensagens com meu orientador, a cada saudade dos amigos que não vejo há um ano, eu penso: “Meu Deus, tudo isso aqui tá acabando”. Eu, que nunca fui amante do saudosismo, tenho, a cada dia, me visto mais imerso num saudosismo meio nostálgico de tudo que ocorreu ao longo desses quase 4 anos. Mas uma saudade maior, indefinida, meio amedrontadora, veio ganhando força dentro de mim, a saudade maior não é dos amigos, não é dos professores, não é da rotina que se esvaiu na pandemia; a saudade maior é dos meus pedaços que ficaram ao longo do caminho.
Finais sempre são, para mim, melhores que começos, mas esse final, por diversas razões, me faz pensar constantemente no tanto que cresci e me desenvolvi ao longo da jornada, mas crescer significa deixar para trás, deixar para trás alguns dentinhos, alguns medos, algumas certezas, algumas incertezas, deixar para trás alguns pedaços. Crescer é conquistar, mas também é deixar. Aquele acúmulo de mini dentes caindo dos meus 6 aos 12 anos, fez com que uma nova arcada dentária surgisse; o meu acúmulo de pequenas mudanças, ao longo de um infinito quadriênio, fez com que um novo indivíduo surgisse, não digo que isso é ruim, mas aquele outro indivíduo esteve comigo durante 18 anos, era fácil entendê-lo, amá-lo e odiá-lo, suas emoções eram claras para mim e eu sabia como tratar dele. Esse novo indivíduo in pandemia ainda está sendo descoberto, há dias em que está ótimo, há dias em que pensa em virar um frontal com gelo e acordar só em 2022, vacinado, sem pandemia e, preferencialmente, com Lula eleito presidente do país; noutros dias, está o que está, existindo dentro do possível para um indivíduo pandêmico - sim, sei que estou sendo cruel com esse ser em pandemia, ele merece afeto e agradecimento por estar sendo resistente diante de tudo isso.
Não aceito estar no papel daquele que ama o passado e não vê que o novo sempre vem, não sinto saudade de tudo, sinto saudade daquela inocência ante a vida, de acreditar inveteradamente que as coisas e as pessoas são sempre passíveis às mudanças e que alguns males, por maiores que sejam, são inatingíveis a mim e as pessoas que amo. Crescer, pelo que entendi, é ficar um pouco medroso, receoso, acho que depois que se descobre que viver é bom, a gente passa a cuidar mais desse espaço, desejando que ele não cesse pelo máximo de tempo possível, querendo enxergar com mais veemência o lado bom da vida. Sinto saudade daquele rapazinho inocente, meio tapado, meio alienado, meio triste, que enxergava situações boas em tudo e não acreditava em uma versão do futuro onde não pudesse ser feliz. Nesse momento, ele faz bastante falta.
Mas como pontua Gonzaguinha, há beleza em ser um eterno aprendiz, aceito e agradeço cada mudança, acolho e amo cada versão, sinto a dor de cada pedaço deixado e de cada versão que se foi, mas abro os braços para cada nova versão, com um novo presente, que se aproxima de mim. Sabe os dentinhos? Eles deram espaço para dentes mais fortes; as certezas, deram lugar a incertezas que me conduziram ao caminho que hoje agradeço por trilhar; as incertezas, deram espaço a certezas que me motivam a não desistir; o medo, de alguma forma não sumiu totalmente, mas ele coexiste com a coragem, aquela de que Guimarães Rosa tanto falava, que faz ser capaz de ficar alegre no meio da alegria e mais alegre ainda no meio da tristeza.
Coragem, Pedro… coragem! Tudo o que ela quer da gente é coragem para deixar ir embora e seguir o caminho trilhado.