SONHANDO ACORDADO

O preto velho curador e seu rosário encantado

(*) Antonio Devanir Leite/Santo André - SP

Numa viagem no tempo observei multidões de enfermos indo em direção a amplo local que se acomodavam levas de pessoas doentes, do corpo e da alma na periferia de cidade interiorana de Minas Gerais, alguns sendo transportados em macas, outros apoiados em muletas, cadeiras de rodas ou desembarcando de seus veículos, acotovelando-se na tentativa de ser o próximo a receber um poderoso benzimento que ali era ministrado por um preto velho por nome Narciso; não sem antes amargarem horas na fila. Não eram poucos os que saíam reabilitados e livres de suas dores ou enfermidades. Até portadores de doenças ditas incuráveis que eram banidas de seus corpos como num passe de mágica pela reza do preto velho. Narciso começava cedo e dizia aos mais íntimos que assim procedia para não perder o encanto recebido de seu pai, o negro Bastião, que por sua vez havia recebido de sua mãe, Nhá Balbina, ex-escrava, alforriada, liberta a pedido da Sinhá Margarida, esposa do fazendeiro Miguel dos Anjos, dono do engenho de cana onde produzia rapadura, melado, açúcar mascavo e aguardente.

No sonho era como se eu pudesse viajar no tempo, até a época a do Brasil colônia, em Minas Gerais observando a movimentação do trabalho escravo que era grande naquela fazenda, cuja vastidão se perdia de vista. Como os demais senhores de engenho Miguel dos Anjos mantinha a seu serviço, sob o látego do chicote ou do tronco, centenas de negros bantus. Na mesma fazenda, Nhá Barbina, bisavó do negro Narciso, tinha sido levada para a Casa Grande ainda menina e lá permanecendo como mucama da Sinhá Margarida, servindo também como ama de leite dos seus quatro filhos. Sempre dócil, Nhá Barbina terminou seus dias ali mesmo na Casa Grande sendo tratada com desvelo por todos da família. Do convívio íntimo com a Sinhá, a negra velha tomou contato com sua maneira de rezar observando sua dona mover os lábios enquanto corria os dedos pelas contas do rosário. Diferente das contas do rosário da Sinhá, Balbina, a escrava, tratou logo de encontrar a quantidade suficiente de cocos de babaçu que caiam dos cachos a partir de julho e agosto, para montar o seu próprio rosário. Contou o número de contas, escolheu com cuidado separando as fileiras com alguns cocos maiores. Sempre atenta aos movimentos labiais de sua ama quando ela ajoelhava diante do oratório, assim foi que a negra velha “aprendeu” rezar.

Trabalhando na Casa Grande Balbina podia andar livremente por onde quisesse, mas o lugar onde ia com frequência era a senzala, visitar seus irmãos de cor.

Certo dia a negra velha foi despertada por gemidos que vinham da senzala e corre para lá deparando-se com um escravo agonizante tendo as costas em carne viva de tanta chibatada que levara. Aproximou-se do infeliz com o rosário nas mãos e pôs-se a rezar. Apenas movendo os lábios, imitando os gestos da Sinhá. Era noite alta e o clarão da chama da candeia levada pelo vento reluzia deixando a mostra profundas marcas do chicote e o sangue que escorria nas costas do pobre homem. Foi então que algo inusitado aconteceu, o ambiente foi sendo iluminado por um clarão jamais visto por aqueles negros, eram fachos de luz branca irradiados ao redor da velha escrava enquanto ela corria os dedos pelas contas do rosário. De repente, como que por encanto, o negro parou de gemer. Todos imaginavam que houvesse morrido, mas não, ele levantou-se do chão, retesado e com o olhar fixo na negra rezadeira, exclamando: "Nossu sinhô tá juntu di vassuncê, num sintu mais nada!".

Aqueles negros foram os primeiros a testemunhar a eficácia da reza da escrava Balbina que não tardou espalhar-se pelas redondezas. Dali em diante, sempre que alguém caia na desgraça de ser amarrado no tronco, a negra velha, com seu rosário, era chamada e sua fama de aumentava a cada dia. Mesmo a contragosto de seus donos centenas de casos de cura iam sendo anunciados pela eficácia da sua reza. Até cavalo picado de cobra, cachorro vítima de porco-espinho, boi amuado, criança com barriga grande, mau olhado, espinhela caída, a reza de velha escrava curava mesmo. Pelo adiantado dos anos e com as forças se esvaindo a velha escrava, sem mais poder ir até a senzala, mandou chamar seu neto para lhe ensinar o que havia aprendido, "só di oiá". Foi assim que o Bastião, pai de Narciso, ainda menino, ouviu atentamente aquela revelação, mantendo em segredo a reza e o compromisso de que fosse transmitido ao seu filho, promessa que jurou passar adiante. Foi assim que o Narciso, que até então não sabia rezar, guardava consigo o segredo e o compromisso de passar adiante. Obediente, jamais se esqueceu da recomendação da velha escrava: "- Quando vassuncê num guentá mais vivê, vassuncê iscói arguém bão i num dexa quebra u incantu viu!"!

Foi assim, de geração em geração que a reza e a fama chegaram até ele. Notícias sobre curas realizadas pelo negro velho ganhou o mundo. Vieram estudiosos dos fenômenos para-normais, médicos, psicólogos e uma infinidade de cabeças pensantes buscando desvendar o segredo de sua capacidade curativa e as intrigantes emanações de luzes irradiadas durante as sessões de benzimento.

Devido ao fluxo exagerado de gente os arredores da casa do preto velho foi sendo ocupado por pousadas, restaurantes, lanchonetes, centros de estudos holísticos, casas de repouso, terapias alternativas, etc. A movimentação era intensa com o vai-e-vem de milhares de beneficiados pela reza do negro velho retornando às cidades de origem, não sem antes adquiriem em barracaas e lojas mimos em arte barroca rotulados: "Lembrança do Preto Velho Curador". Um detalhe deveras interessante, a imensa maioria de doentes do corpo e da mente não era negra e jamais vi alguém virando o rosto quando cruzava com um negro naquele ambiente, sim porque a maioria dos atendentes ali também era composta por negros.

Segredo desvendado

Na velocidade do pensamento e a possibilidade que temos em poder sonhar com qualquer época, com o passar dos anos cheguei ao Brasil de agora encontrando o velho Narciso impossibilitado de continuar sua missão decidindo que estava na hora de ensinar o segredo da reza ao parente mais próximo. Permaneceu meses tentando identificar entre os familiares a quem deveria revelar o segredo e a reza. Seu filho Jerônimo foi descartado, continuava às voltas com a administração do restaurante, a nora Janaina, também, cuidava da organização da imensa fila de doentes que o procuravam e nunca tivera tempo para conversar amiúde com ele. Pensou em chamar o cunhado que era pesquisador e tinha trabalhado ao seu lado anos a fio, fazendo experimentos científicos tendo até mesmo instalado inúmeros fios ligados ao seu corpo tentando identificar num monitor de TV a procedência das luzes e da energia emitidas na hora da reza, este também foi descartado, estava muito ocupado com o lançamento do seu novo livro "Fontes de Luz - Pesquisando o invisível", escritor de renome e autor de outra obra, (esgotada): “Metodologias para investigar estados alterados de consciência e experiências anômalas”. Só restou a neta Eduarda que às suas expensas, cursava "Ciências da Computação". Mandou chamá-la de imediato, mas a jovem também teve um imprevisto, pois exatamente no dia marcado para visitar o avô participava de uma gincana promovida pela universidade.

Entra em cena a modernidade

Prevenida como o quê, a jovem acadêmica enviou pelo correio um gravador e uma carta pedindo desculpas ao avô, que ele gravasse a reza que ela ouviria assim que pudesse. O velho Narciso, puro de coração, em cujo íntimo não havia lugar para suspeitas, nem desrespeito, sem nunca ter visto um aparelho daqueles indagou se aquela engenhoca eletrônica era mesmo confiável, pois o recado era somente para ela. Convencido que sim, o negro velho pediu que ligassem o aparelho fechando a porta do quarto. Na manhã seguinte, a nora Janaina, afoita com a imensa fila se formando diante casa, foi até o quarto para ver o que estava ocorrendo, bateu várias vezes, mas ninguém respondeu, chamou os familiares que arrombaram a porta e finalmente constataram o pior, o corpo do velho Narciso jazia ao lado o gravador, ainda ligado. Foi um corre-corre danado para desencanto das centenas de enfermos que jamais puderam sentir os efeitos curativos das luzes e da reza do negro velho.

A vez de Eduarda

Prevendo o pior, todos daquela comunidade, fadados a perderem seus investimentos em "infraestrutura", buscaram novas alternativas, como diria o saudoso Chaves encarnando o personagem Chapolin Colorado: "E agora quem poderá nos salvar?", ou melhor, "Quem continuará rezando pelos doentes enquanto mantemos nossos negócios?". Não tardou ficarem sabendo que o velho antes de bater as botas havia convocado a neta alegando que tinha algo de muito valor e importância a ser revelado, somente a ela. Durante o velório e o enterro, filas imensas se formaram junto ao esquife para o último adeus; discursos inflamados à beira da tumba, fazendo uso da palavra importante político local discorrendo sobre as qualidades do morto prometendo envidar esforços no sentido de perpetuar a memória de tão ilustre cidadão encabeçando campanha de arrecadação de recursos para erigir na praça central da cidade busto em sua homenagem. A multidão ainda não havia se dispersado quando alguém lembra que o negro deixara gravado o segredo de sua reza forte. Foi então que o locutor da “ZYKnalha”, rádio local, que havia conseguido uma cópia “com autorização da neta Eduarda e mediante contrato de exclusividade para sua comercialização" (o que ele não disse é que em segredo ela recebera "modesta quantia") “desejosa” em perpetuar a memória do avô dando a conhecer o segredo da reza forte”.

O silêncio naquele cemitério nunca fora tão sepulcral, após uma dezena de comerciais o éter passou transmitir a voz rouca do negro velho:

"Ói minha neta, Nóssu Sinhô ta mi chamanu i vassuncê deve aprendê a reza forti, iguarzinho rezava nossa mãe, vassuncê deve carregá tomem u ruzáro qui foi ela memo qui feiz. Vassuncê faiz ansim, vai correnu us dedu nus mais miúdo inté chegá nus grandi. A reza é forti i só devi sê rezada uma veiz pá cada um, faiz issu qui Nossu Sinhô atendi, vassuncê prigunta u nomi i dondi senti dô i pódi cumeçá rezá passanu os dedu nos piquenu: PASSA TÚ, PASSA TÚ, PASSA TÚ, PASSA TÚ, PASSA TÚ, PASSA TÚ, PASSA TÚ, PASSA TÚ, cheganu nus grandi, reze: PASSA VASSUNCÊ QUE É MAIS MAIÓ”.

Envolto numa espécie de madorna, preparando-me para voltar a realidade, fiquei matutando como aquele negro velho possibilitou a cura de tanta gente mesmo sendo analfabeto e sem saber rezar “direito”? Foi aí que senti um tapinha nos ombros e como sonhar não paga impostos e a gente pode sonhar até que falou com Deus, quem chamou-me a atenção foi um anjo, postado ao do Narciso, agora envolto num halo luminoso dourado cujo timbre de voz se assemelhava a um canto gregoriano: “Diga aos seus leitores, antes de encerrar sua crônica que Deus sempre estará atendendo pedidos daqueles que tiverem fé. Diferentemente dos pseudos evangelizadores que grassam por todo o planeta, muitos de olho no dinheiro do doente e não na sua cura!”

(Crônica publicada no jornal Integração em outubro de 2006)

(© Antonio Devanir Leite/Santo André – SP - Direitos reservados - Lei Federal 9610/98)

Antonio Devanir Leite/Santo André – SP
Enviado por Juares de Marcos Jardim em 23/04/2021
Código do texto: T7239692
Classificação de conteúdo: seguro