O MARISQUEIRO BENTO

Bento Barcelos da Silva, eletricista, observador meteorológico dos quadros do Ministério da Agricultura, escritor e primoroso contador de causos, no dia 21 de abril, no fatídico 2021, em Torres, Litoral Norte do Rio Grande do Sul, encantou-se por vontade própria, exercendo o seu arbítrio de condenado ao pensamento e à ação. Talvez quisesse saudar Tiradentes, protomártir da independência brasílica. O seu espiritual sobrepaira nossa irrisória e tristonha perplexidade para entender os desígnios do Absoluto e o humano arbítrio para a transmutação. Bento Barcelos, o "bicuíra torrense" foi corajoso e prático – qualidades que eram de seu perfil – até na sua própria finitude. A saudade se instala em mim feito um marisco entre as pedras, água e areia, tudo revolto, tal qual os desideratos do vir, ficar e partir. Dia desses vou à Furna do Diamante, ali no Morro do Farol, a auscultar nos cicios do vento alguns novos "causos" que nasceram dos atos do covil de despedidas. Por certo soarão aos ouvidos como escrituras do soprar eólico do norte litorâneo. Em tempos de pandemia da Covid-19, o marisqueiro foi um dos poucos (o único aos meus olhos baços de maresia) que venceu o vírus por antecipação, sem vacina nem ritual. Saudoso, o teu menestrel amigo continuará a bisbilhotar as marés diárias para tentar entender as humanas viagens – aquelas sem volta. Contristada, abalada, a comunidade cultural cumpre o seu ritual de passagem aos ventos de outono, com uma retinta fita crepe no peito. Que durmas bem, bicuíra relançado ao pó das origens. A prece de hoje tão diminuta (por minha especificidade e pequenez) é em teu louvor, andarilho das areias. É bem assim, cada libertário tem dentro de si uma sementinha teimosa de Joaquim José da Silva Xavier, passados mais de trezentos anos de moto-contínuo. E o humano ser comprometido com o seu tempo gesta o que está no sangue redivivo. Todos bastardos andejos de mundo, ansiosos e insatisfeitos, aqueles que se atrevem a pensar e sonhar um outro mundo possível pagam um alto preço por suas andanças quixotescas nestes brasis de Ogum e Iemanjá. Em breve, num lusco-fusco, após havermos perdido as higiênicas máscaras, o Mampituba engolfará as cinzas e vomitará ao mar tuas envolventes raízes telúricas. E tudo voltará ao pó superveniente das inquietas artérias nos mariscos e maçambiques, que de há milênios matam a visceral fome dos injustiçados sociais. Entre pedras, marujas areias toldadas de também inquietas águas, espumando esperanças decapitadas pelas mãos dos que mandam a todo o tempo. Porém, o mar, o vento e areias são unos em sua consistência de assim permanecerem, enquanto Netuno faz sua tessitura de encantos aos olhos estrábicos do horizonte.

MONCKS, Joaquim. A BABA DAS VIVÊNCIAS. Obra inédita, 1978/2021.

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