Bar do Nerço
O Bar do “Nerço” parecia um ambiente pouco recomendável para pessoas de bem, cidadãos de garbo e elegância, pagadores de impostos, ou seja, a família brasileira. O que poderia facilmente ser descrito como o fundo do poço, o pior lugar que a degradação social levaria alguém, na verdade foi um cantinho democrático. Parada obrigatória para uma big hour, happy hour ou simplesmente encher a cara. Ao cair da tarde, peões amarravam cavalos e “us dotô” estacionavam carros importados. Estava estabelecida a configuração do Bar do “Nerço”: malandro junto com trabalhador.
GB (Gebê): o senhor que atendia pelas iniciais de “gente boa” sentia falta de mentes brilhantes. Talvez procurasse no lugar errado. Diante da escassez, chamava de “cabeça”qualquer indivíduo que tivesse lido pelo menos “O Pequeno Príncipe”. Sua maior credencial era dizer que foi amigo de Jair Picerni (Google). Sumiu, não se sabe se abduzido ou tragado pela terra.
João Bafo de Onça: o próprio apelido já o descreve bem.
Gebê trouxe um objeto inédito para paladares pouco apurados: uma garrafa de whisky de grã-fino. O drink seria servido numa ocasião especial, para pessoas especiais; jamais para a tigrada acostumada a ingerir Fernet, Velho Barreiro, Fogo Paulista e Jurubeba Leão do Norte.
A garrafa ficou ali no alto, sendo exposta numa espécie de oratório; para os ateus, um troféu. João avistou e encarou o objeto. Aquilo era familiar, afinal tratava-se de uma garrafa, e ele reconheceria uma a quilómetros de distância. Mas aquela era diferente, estava limpa e parecia conter um líquido precioso, coisa fina.
No mundinho de João, tudo e todos sumiram, eram apenas ele e o “néctar dos deuses”. Bafo de Onça ficou hipnotizado pela garrafa. Como uma ilusão, viu e ouviu o invólucro dizer-lhe: beba-me. Mas, com o senso de justiça afinado, ele não tocou a bebida.
No grande dia, os amigos do Gebê foram reunidos, como uma confraria, um clube do whisky, só “os cabeça”. Imbuído de espírito altruísta, um dos “cabeça” chamou os excluídos para a, anteriormente exclusiva, confraternização. João Bafo veio no lote. Nosso herói não se fez de rogado, encheu um copão e, sem dó nem pena, entornou o conteúdo como se fosse água. João sentiu-se feliz como em nenhum momento de sua breve existência.
Pronto, o Johnnie Walker Red Label que adormeceu durante 8 anos em um barril de carvalho e outros tantos dias sob a zelosa vigilância do infeliz proprietário, sendo velado pelos olhos curiosos dos transeuntes, foi sorvido totalmente em um único gole.
Gebê, durante dias, tratou aquele vasilhame como um jardim: cuidou, como se adubasse, podasse, matasse as pragas e regasse diariamente. O jardim estava belo, ele era exibido a todos, com orgulho. Quando de repente, surgiu João Bafo de Onça, com seu trator, passando por cima de tudo. Era o final de um sonho.
Gebê, imóvel, não se emocionou nada com o acontecimento. A lágrima que deve ter escorrido pelo seu rosto foi atribuída à fúria com a visão da sua querida garrafa vazia. Durante sua ronda diária, ele já temia por isso, porém não na sua frente. Gebê foi impactado pela pior cena da sua vida. Gebê respirou fundo, contou até dez, pois já conhecia o autor daquilo. Diante da raiva, da vergonha e do horror, a vida do Gebê passou como um filme. Passado o ódio, Gebê teve uma epifania e sorriu. A Humanidade não tinha jeito, e ele teve a certeza de que já havia procurado em todos os lugares.