Agosto

Quando cobriu a cabeça com o seu chapéu fedora e saltou do bonde nas proximidades da rua Toneleros, em Copacabana, Fagundes já tinha plena ciência do que acontecera ali na madrugada. Todos já sabiam. As notícias corriam depressa: "Disparou 6 tiros em Carlos Lacerda", fora a manchete do Diário Carioca que Fagundes lera na banca. Pagou o jornal e ia saindo quando leu outra, agora no jornal Tribuna da Imprensa, dirigido pela própria vítima dos atentados: "A Nação exige os nomes dos assassinos". Fagundes sorriu. Mas não por malícia -- o coitado não tinha fervor político --, é que ele, assim como a maior parte da população carioca, já estava a par de tudo. Fagundes não saía de casa antes de ouvir por meia hora o noticiário no rádio. Mas as notícias escritas nas utilissimas folhas dos jornais, contudo, eram mais completas. O sol ardido daquele início de agosto obrigou Fagundes a tirar o paletó; o colocou grosseiramente dobrado numa mão e, com o jornal na outra, seguiu para a padaria.

    Ele seguia pelo meio-fio, caminhava depressa porque o sol amolava; queria se proteger sob o toldo da padaria onde, entrementes aos goles de café e as olhadelas às passantes, esperava encontrar no jornal o que só superficialmente ouvira no rádio. Fagundes chega à padaria, deposita o paletó e o jornal sobre o balcão; tira o chapéu da cabeça e um lenço do bolso. Com este, Fagundes limpa grossas camadas de suor da fronte. Chega o atendente e, sem "bom dia", atira na cara do homem cansado um "desculpa, patrão, mas nós já vamos fechar". Fagundes leva o tiro e reage com indignação: "Como é, seu moço? Que história é essa, eu acabei de chegar!". O atendente, penalizado, explica que a polícia esteve no estabelecimento mais cedo e recomendou ao dono da padoca que baixasse as portas para evitar confusão. "É o Dr. Lacerda, patrão", explicou, "os hômi tentaram matar ele hoje na calada da noite. O patrão não ouviu no rádio?". Fagundes nem pensou em responder. Ficou observando com tristeza o atendente desmontar a cafeteira Monarcha de latão dourado enquanto explicava o motivo por que tinha de fechar a padaria.

    Já na rua, Fagundes voltou para debaixo do Sol. Sem ter sorvido um único gole de café, agora começava a sentir e a ouvir os borborigmos do baixo-ventre. Ele seguiu pela Toneleros até acessar uma de suas travessas. Fagundes entreviu ao longe a Av. Atlântica, pensou em descer até lá. "Às favas o café! Eu vou tomar uma cerveja em Copacabana!". E foi. Descendo, observou hordas de crianças voltando da escola. "Que estranho!". Antes de chegar à Av. Atlântica, Fagundes se deparou com um grupo de operários que, a julgar pelos sorrisos que traziam no rosto, deveriam estar de dispensa. O intrigado Fagundes, que ainda não tivera a oportunidade perfeita para degustar o jornal que trazia consigo manchado de suor, resolveu perguntar a um dos operários que seguia em sua direção na calçada o que estava acontecendo. "Opá!, dá licença, batente, estão de dispensa, é?". "É, dotô", respondeu o operário, "o patrão mandô todo mundo pá casa por causa de que tentaram matá o dotô Lacerda". Fagundes agradeceu a informação com um aceno de cabeça e um movimento com o chapéu, e seguiu em direção a Copacabana.

   

    Pela manhã, enquanto fazia a barba e ouvia o noticiário no rádio, ele nada ouvira sobre o fechamento de fábricas e padarias; e também nada soube sobre a dispensa de crianças das escolas. Fagundes que, por essas ironias fatais da vida, não nutria fervor político, conseguira emprego justamente no centro nevrálgico da política nacional, no Palácio do Catete. Ele era um dos secretários responsáveis pela correspondência da Presidência da República. No entanto, mesmo ali, na receptiva de todas as discussões, na obrigatoriedade da observância de todos os palpites, de todas as opiniões sobre o estado de coisas da política nacional, Fagundes se mantinha numa inexpugnável fortaleza de indiferença. Esta fora a única ocupação que encontrou quando voltou da guerra, há nove anos.

    "Finalmente, Copacabana!". Fagundes começou a pensar em coisas que nunca pensara antes: conjecturou que as curvas incrustadas na calçada da orla com pedras portuguesas eram, na verdade, uma simbólica homenagem às mulheres que, de maiô e biquíni, desfilavam por ali. A amplidão do céu sem nuvens, o mar, as montanhas, o mormaço... Fagundes percebeu, pela primeira vez, que aquela praia, aquela insignificante porção de litoral na continental costa brasileira, era uma remanescência do Éden. "Poderia ser (...)". "Droga!, que fome desgraçada!". Pensou em almoçar num restaurante nas proximidades, mas não: decidiu mesmo atravessar a Av. Atlântica e ir comer qualquer coisa num quiosque à beira-mar. Era curioso notar como se vestiam os transeuntes: ou estavam em trajes de banho ou de social. Em Copacabana, as moças de maiô dividiam o espaço -- aquele magnífico espaço -- com senhores vestidos de alfaiataria. Fagundes encontrou um bom lugar para matar a ruidosa fome da manhã.

    Se aproximou do quiosque, tudo lhe era agradável. Paletó, chapéu e jornal no balcão. "Bom dia, patrão!", disse o atendente. "Bom dia! Me vê uma cerveja e um mata-fome caprichado, faz favor!". Bebeu meia caneca antes de se dar conta do jornal. O Diário Carioca agora estava imprestável, fora estragado pelo suor do fatigado Fagundes que, sem se incomodar, pagou pela refeição, apanhou seus pertences e saiu. O homem, que já trabalhava no Catete há nove anos, pensara num desfecho para a sua ordinária vida de burocrata há alguns meses. Fagundes queria pedir demissão, queria abandonar aquela vida que, para todos parecia medíocre, na pura acepção do termo. Talvez fosse. É provável que fosse. Mas Fagundes não pensava assim, ele sabia que poderia fazer muito mais longe daquele meio que o sufocava; sem ter de atender as expectativas dos seus pares burocratas. Antes de sair de casa, antes até de ouvir as sensacionalistas chamadas no noticiário do rádio, Fagundes tomara uma resolução: este agosto de 1954 seria o último de sua vida enquanto funcionário do Palácio do Catete. Fagundes ia para a Argentina. 

Vitor Marcolin
Enviado por Vitor Marcolin em 21/04/2021
Reeditado em 21/04/2021
Código do texto: T7237873
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.