O descobrimento de Pindorama, depois Brasil!
Os fatos históricos nunca estão sob o controle dos historiadores, mas as interpretações sim. Vou fazer aqui uma digressão ao assunto proposto para depois voltar à ele. Os fatos históricos, por vezes, são como meteoros gigantes que quando caem no planeta terra (ou porque o planeta se encontrava na mesma direção dos meteoros, ou talvez por efeito da contingência) acaba causando uma intensa destruição de vidas numa dimensão global. A história do desaparecimento dos dinossauros já é bastante conhecida entre nós. O que de fato sabemos - é consenso científico -, que os dinossauros foram surpreendidos com a “chegada” dos grandes meteoros que causaram um impacto tão grande no planeta que provocou a extinção deles. As contingências parecem ser, para qualquer forma de vida, algo sempre devastadoras. Os físicos e astrônomos podem compreender cientificamente este fato ocorrido nos seguintes aspectos: a velocidade com que os meteoros chegaram aqui antes do impacto, seu volume e peso, sua trajetória e, até mesmo, podem nos dizer, de qual localidade estes infelizes meteoros vieram. No entanto, uma coisa os físicos e astrônomos não podem resolver: eles não podem mudar o que aconteceu. Saber nem sempre é poder. Francis Bacon, disse o contrário. Penso que, talvez, o filósofo estava completamente embriagado de otimismo pela razão quando afirmou que "saber é poder". Mas vamos à outro exemplo: sabemos muito sobre terremotos; as razões de suas causas e consequências, mas, isso não altera o fato de que os terremotos continuam a existir e provocar grandes estragos, principalmente, quando ignoramos a existência deles. Conhecer algo, destrinchar cientificamente um fenômeno físico, não significa que você poderá alterar os acontecimentos pretéritos e, muito menos, acontecimentos futuros. As contingências também reinam no mundo da razão. A ciência tem suas limitações, ainda bem. Depois desta digressão didática volto ao tema da crônica: o que nós historiadores podemos fazer diante dos fatos históricos acontecidos? Primeiro coisa a saber: a história é uma ciência. Uma ciência que também tem seus limites em relações aos fatos, ou aquilo que os profissionais da história chamam de acontecimentos históricos. Os historiadores diante dos fatos, como os físicos e astrônomos, podem interpretá-los mas não podem mudar o que aconteceu. Os historiadores não conseguem alterar os fatos acontecidos. As contingências também reinam à razão da história. Repito: eles somente podem interpretar. As narrativas são sempre construídas a posteriori aos fatos ocorridos. Embora possa se relativizar afirmando que o próprio fato histórico já é, ele mesmo, uma construção narrativa. Mas não acho que esse relativismo possa ser aplicado à qualquer fato histórico. Não se pode, por exemplo, relativizar a chegada dos europeus ao “novo mundo” (a América era um continente desconhecido por eles) e que todo o processo marítimo da época não teve o impacto político-cultural irreparável na história dos nativos que não tinham o continente como uma novidade em suas histórias. As interpretações sempre dependerão dos métodos e conceitos que os historiadores irão utilizar. O como fazer (os métodos) e porque faço (os conceitos) é o que define o trabalho do historiador. As palavras: “Achamento”, “Descobrimento” ou “Invasão” do “Brasil” se relaciona muito mais sobre o porquê faço história (os conceitos) do que como se faz história (os métodos). Vamos aos exemplos: posso usar a palavra “descobrimento” e contextualizá-la antropologicamente em vez de negá-la? Sim, podemos. Não usá-la acaba sendo um erro antropológico e didático. Posso usar a palavra “Descobrimento” para dizer aos alunos e alunas que as culturas humanas sempre trazem um olhar egoísta, portanto, centradas nelas mesmas. Então dizer que o “Brasil” foi “Descoberto” é proporcionar a compreensão do conceito de etnocentrismo cultural. A história do Brasil é uma experiência científica e intelectual que nos permite compreender as práticas sociais, política e culturais do passado para não ficarmos cegos e ignorantes do que acontece em nosso presente. O entendimento acerca dos conceitos de cultura e de etnocentrismo são ferramentas úteis para compreensão da nossa história. Mas, qual cultura não é etnocêntrica? Haveria alteridade se não houvesse etnocentrismo? Como diz, Lévi-Strauss, “para conhecer e compreender sua própria cultura, é preciso aprender a olhá-la do ponto de vista de outra... deve aprender a ver a si próprio com se fosse espectador”. O antropólogo nos pede um cuidado com a objetividade com a “ciência da cultura” para não cairmos nas idiossincrasias ideológicas e militantes. Os estudantes precisam saber disso. Que o conhecimento científico é atravessado por idiossincrasias. Por isso, a verdade científica é carregada de segredos ocultos. Não foi Nietzsche quem disse que a verdade na história é sempre contada pelo vencedor e não pelo vencido? Ele não estaria nos aconselhando para o cuidado com a “verdade”? O filósofo não desejou que estabelecêssemos sobre a “verdade” um perspectivismo de alteridade sobre ela? Então uma verdade que pode ser dita nesta perspectiva é que palavra “descobrimento” não nega a história dos vencidos, mas revela a ausência de alteridade de como o outro compreendeu o mesmo acontecimento. Sendo assim, o uso da palavra “descobrimento” exige outros conceitos para entender o que não foi narrado e esquecido. Ou melhor, o que não foi dito. Portanto, a palavra “descobrimento” não invalida a possiblidade de se fazer uma outra narrativa da história verdadeira, mas exige uma outra forma de abordagem sobre ela. Uma nova história, não precisa negar a anterior, mas se reescreve a partir dela. Não se conta uma nova história jogando a velha na lata de lixo. Uma nova história nunca é mais culturalmente “verdadeira” do que a outra. Todas as culturas são produtoras de verdades sobre elas. Se negarmos este entendimento não estaremos tratando de alteridade entre as culturas, e sim de etnocentrismo às avessas. O conhecimento de culturas tem os seus impasses quando o relativismo é levado a sério, não é mesmo! Ao contrário de descartar o vocabulário instituído da história antiga, ele deve nos servir de matéria-prima para se pensar uma nova. Uma nova história que narre as verdades culturais de outros povos, que seja capaz de legitimar as memórias violadas e colocadas ao esquecimento. Não é fácil pensar uma nova história que seja capaz de ter um programa de conteúdos para construir uma comunidade nacional marcadas por tantas diferenças culturais. Mas, sem este espírito científico-intelectual de cuidado com a objetividade, ela acaba se tornando um panfleto político de revanchismos e ressentimentos que só nos leva aos conflitos estéreos nada propositivo na formação de uma sociedade nacional com justiça social. Uma história nacional precisa sempre se reescrita, mas isso exige desafios metodológicos e conceituais nada fáceis. O perspectivismo da filosofia antropológica de Nietzsche pode ser um bom conselho aos historiadores para refletir sua ciência do passado. Fazer uma história que deve está a serviço daqueles “que sofrem e necessita de libertação”. Um lar de liberdade não é uma tarefa fácil. Conciliar liberdades levando em conta as alteridades culturais é uma tarefa muito mais difícil. Mas temos que nos esforçar. As problematizações conceituais sobre as questões do “Eu” e o “Outro” estão diretamente inseridas neste difícil desafio de como podemos redirecionar as construções das novas narrativas históricas de construção nacional sem perder sua dimensão global. Sabemos todos nós que os encontros humanos são profundamente marcados não só pela violência, mas também pelo domínio das interpretações de suas histórias. Os fatos históricos vão além das palavras. É falacioso acreditar que a mudança de uma palavra, modifica um fato histórico. “Carta de Achamento do Brasil” e “Descobrimento do Brasil” revela verdades de uma cultura que ocultou e negou verdades de outras culturas. Caso exemplar de etnocentrismo. O professor e a professora de história devem estar sempre atentos de como operar as palavras com auxílio dos conceitos sem precisar negá-las da existência do vocabulário. Por isso, que a palavra não muda o fato histórico em si. Os conceitos sim, eles redirecionam os sentidos do pensar histórico. Me parece que o negacionismo é uma experiência cultural contemporânea no Brasil que está para além da arena política, ela adentrou de forma muito mais séria em nossa cultura com os disfarces da ciência. Uma “ciência” carregada de ressentimentos, diria Nietzsche. No ambiente escolar, no que diz respeito ao ensino de história, por vezes, a palavra “descobrimento” se torna um ressentimento disfarçado de uma ética linguística utilitarista que procura somente agradar uma plateia estudantil. Subestimando a inteligência discente. Sabemos que história é uma ciência problemática como qualquer outra ciência. A verdade é cheia de segredos. Por fim, um dos significados da palavra “Pindorama”, para alguns arqueólogos, é que ela se refere ao mito de uma terra livre de todos os males. O mito de uma terra paradisíaca que fazia parte das crenças de alguns povos nativos deste continente de etnias tupis-guaranis. Parece que as migrações intra-terretoriais destes povos em direção a costa litorânea do continente da América do sul aonde se encontra o Brasil (que para os nativos era Pindorama) se relaciona com a tentativa de “descobrir” as terras das palmeiras aonde os males da vida não mais existia. Os povos nativos deste tronco étnico se deslocavam no desejo de “descobrir” seus mitos territoriais paradisíacos. A chegada dos europeus interrompeu este processo mítico interno. Comparo a chegada dos europeus ao continente pré-colombiano (que eles chamavam de “novo mundo”) como se fosse uma grande tempestade de meteoros que assolou estes povos nativos que aqui se encontravam de forma imponderável. A vida humana não escapa também das contingências do tempo que nos prova o tempo todo que não estamos no controle dele. É pueril acreditar que domamos o tempo, mais infantil ainda ainda é crer que estamos no controle dos acontecimentos. Por isso, procuro lembrar de uma história não humana para demonstrar a existência da contingência na vida. A chegada dos meteoros foram para os dinossauros, um acontecimento devastador e invasivo de magnitude catastrófica global. Foi numa época em que a vida humana não existia. A era das navegações do início da modernidade tenha algo que se assemelha quando se observa os fatos históricos na perspectiva das contingências (a chegada dos europeus). Mas, se por um lado, existe as contingências na vida humana, no entanto, a história humana é também produto dela mesma através das ações dos sujeitos com suas intencionalidades deliberadas capazes de promover ações catastróficas de forma intencional. A dialética dos acasos e das ações dos sujeitos no mundo humano não podem ser negadas nos ofícios dos historiadores. A busca pela descoberta de "terras paradisíacas" como foi o mito de Pindorama entre algumas etnias nativas no território que passou a ser chamado de Brasil; revela o quanto os mitos antigos e modernos são capazes de promoverem e de justificarem as ações humanas guiadas pela moral do seu tempo e pela localidade em que habitavam. O historiador deve ter cuidado com os anacronismos morais quando observa a história humana. O relativismo não pode ser unilateral no "tribunal" do presente. Assim, como povos indígenas buscavam pelos seus mitos, os europeus, daqueles séculos de navegações marítimas, também buscavam encontrar seus mitos de territórios paradisíacos. Tais mitos eram estampados na forma de crucifixos nas velas de suas embarcações. Temos aí uma outra problemática conceitual novamente com a palavra “descoberta” que não deve ser compreendida só na perspectiva econômica e política do mercantilismo moderno. Ela também pode gerar reflexões mítico-religiosas que envolvem as experiências humanas culturais separadas pelo Atlântico. A frase: “o Brasil não foi descoberto e sim foi invadido”, além da imprecisão antropológica, uma vez que o conhecimento antropológico é para ser aplicado em todas as culturas, e não para o conhecimento seletivo idiossincrático do pesquisador, ela também me revela um outro dilema irônico. Qualquer pessoa que professe essa frase me passa uma sensação de que ela parece crer que “descobriu” a “verdade” última da história que a produção historiográfica desconhecia. O irônico acerca desta "verdade" dita sobre história do Brasil, é que ou esta pessoa chegou tarde demais sobre o que agora ela professa com tanta militância moral; ou logo ela descobre que não é a primeira a saber da verdade que está sendo dita.