Os adoradores de si mesmos

Levamos muito a sério o valor cultural do “antropocentrismo” do fim da Idade Média e início da Era Moderna. Período também conhecido como Renascimento Cultural. O antropocentrismo tinha como valor moral o ser humano como o centro da vida numa perspectiva individual. Esta invenção social renascentista alterou de maneira decisiva o percurso da vida de alguns grupos de indivíduos naquele contexto histórico. Este valor moral do indivíduo, como o centro das ações em relação ao seu mundo, trouxe mudanças sem precedentes na história ocidental que teve alcance global em diversas áreas da vida humana. As artes, as ciências, as tecnologias, a vida urbana, as novas formas de sociabilidade entre as pessoas, o liberalismo, o socialismo, as revoluções políticas e comportamentais estão, direta e indiretamente, conectados à este acontecimento histórico cultural do "indivíduo" renascentista. É claro que este fenômeno cultural não teve um alcance de grande escala social imediato. Inicialmente foi um fenômeno cultural de uma elite europeia. Foram precisos muitos séculos adiante para que esta cultura moral do indivíduo, enquanto sujeito capaz de intervir em sua própria vida e na vida social e política nacional, ganhasse um alcance popular ou fosse massificado. O século 19 e, sobretudo, o século 20 foram os séculos de consolidação destes ideias antropocêntrico de característica individualista. No século 20, o individualismo ganha outro significado moral, proporcionado pelo ativismo sistemático da indústria cultural de massa da sociedade capitalista com característica ideológica neoliberal. O cinema, a imprensa escrita, a televisão e a internet foram decisivos para o processo de disseminação deste novo individualismo contemporâneo que ao final do século 20 e início do século 21 ganharam características narcisistas. O narcisismo cultural de nossa época é o efeito colateral psíquico e doentio daquele individualismo renascentista do passado. O individualismo contemporâneo de valor moral neoliberal desenvolveu uma patologia social de proporção global que podemos chamá-los de adoradores de si mesmos. É um tipo humano que tem uma crença profunda e incondicional em si mesmo. Sim, é aquele tipo humano narcísico que “acha feio o que não é espelho”, como diz a música de Caetano. Os adoradores de si é uma criatura da sociedade de mercado neoliberal: produto direto do marketing cultural do nosso tempo. Um tipo de indivíduo que acredita em si mesmo descolado de qualquer contexto social, econômico e político. Sabemos que o narciso, da mitologia antiga, morreu olhando para si mesmo em um Lago Natural. Adorou tanto em vê a sua própria imagem refletida no lago que se esqueceu de todo o contexto da vida em que estava inserido. Foi vítima de si mesmo. O narciso de hoje adora se vê no Instagram. São os adoradores da sua própria imagem no lago eletrônico da internet. São vitimas também de si mesmos. Um tipo de pessoa tão centrada em si mesmo que, quase sempre, desconsidera qualquer outra realidade do seu entorno social, econômico e político como agentes responsáveis por sua miséria e morte. Eles ou elas têm uma profunda fé si mesmo e acredita que isso é suficiente para alcançar o seu sucesso na vida. Vivem uma espécie de servidão voluntária ao próprio sistema econômico e político do seu tempo. O mantra ideológico de sua existência narcísica é: “você é as suas escolhas”. A subjetividade do narcísico do Instagram é o produto direto da cultura de autoajuda e do marketing do empreendedorismo na sociedade neoliberal que marca profundamente este tipo de individualismo. Chesterton, um escritor inglês, nos adverte que a maior patologia social da sociedade contemporânea é esta crença narcísica em si mesmo como projeto de sociedade. E, segundo este autor, a pior coisa que alguém poderia ter escolhido para acreditar de forma absoluta é em si mesmo; pois não ter nenhuma dúvida sobre si é a sua própria perdição. Francis Bacon, um filósofo do início daquela era moderna renascentista já nos advertia que para conhecermos a realidade de qualquer coisa, inclusive a nossa, era preciso primeiro destruir os “ídolos” que atrapalhavam o acesso ao conhecimento. Estamos indo hoje em direção contrária ao conselho proposto pelo filósofo. Os adoradores de si mesmo se tornaram ignorante de si. Tornaram seus próprios ídolos. Risível momento histórico.

Wander Caires
Enviado por Wander Caires em 19/04/2021
Reeditado em 05/03/2023
Código do texto: T7236308
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