Apresento-lhes o Mingau

Ele morava lá pra baixo.

Nunca fui á casa dele. Mas sei que ele morava lá pra baixo.

Ele sempre falava disso. Como todos os outros meninos e meninas e gente grande que não tinha – e continua não tendo – casa bonita, feita de tijolos, pintada, com grade de ferro, feito prisão.

Como muitos outros que não tem a fortuna da riqueza, eles moram lá pra baixo. E era lá pra baixo que morava o Mingau.

Quer saber como se vai lá? É fácil:

Toma essa rua empoeirada, sem asfalto. E desce.

Quando chegar ao fim da rua tem um carreirinho. Entra por ele. Passa por umas árvores, plantadas pela natureza... Num daqueles barracos morava o Mingau. Junto com o punhado de irmãos.

Durante o dia ele ficava ali por perto da estação rodoviária. Catando bituca.

Ele e os outros meninos e meninas ficavam por lá. Catando bituca e engraxando sapato de quem vinha de ônibus. Isso quando não estavam brigando ou jogando bafo, ou jogando bulica … mas estava lá pra engraxar sapatos.

E sempre o Mingau estava lá. Caixa de engraxate nas costas. Um punhado de bulica na mão. Cara suja e roupa surrada: como a vida. Com o ombro segurava a caixa. Com uma mão segurava seu tesouro: um punhado de 5 ou 6 bolinhas de gude. E a outra mão segurava e levantava e firmava na cintura o velho, sujo, e rasgado short.

Todos eles estavam sempre por ali. E o Mingau entre eles. Quem olhava do lado de fora do grupo, não percebia diferença nenhuma. Eram todos iguais na cor e no tamanho. Só dava para perceber que o Mingau era diferente quando a gente se misturava no meio deles. No meio daquele bolo de engraxates e bituqueiros. Os donos da estação rodoviária.

Os sorveteiros não ficavam no bolo.

Precisam andar o dia todo, para vender o sorvete – sorvete que alguns chama de picolé, outros de palito.... Se ficassem brincando – ou trabalhando de brincar – não vendiam o sorvete, que era o serviço de gente grande que os pequenos tinham que fazer... E se os sorvetes derretessem o sorveteiro tinha que pagar. O dono da sorveteria não acredita se a gente fala que o sorvete derreteu.

O dono do bar não quer saber se guri tem vontade de chupar sorvete. Só sabe dizer que guri malandro chupa o sorvete e depois não quer pagar. Daí que o dono do sorvete desconta da comissão do sorveteiro – aventureiro das ruas – o sorvete que estiver faltando.

Por causa dessa diferença sociológica, antropológica, econômica... os sorveteiros não fazem turma com os engraxates.

O sorveteiro é nômade.

O engraxate é sedentário. Ele fixou-se na porta do bar e na estação rodoviária.

O sorveteiro é condenado ao ostracismo do grito: “ó o sorvete!” que se esparrama pela rua. Isolado. Sem a companhia da piazada.

Os engraxates ficavam lá. E lá naquele bolo de guris e engraxates, na rodoviária, é que aconteciam as coisas. E a vida da sociedade sempre passava por eles.

Caixa de engraxate nas costas e um punhado de bulita na mão. Ao encontrar-se, os elementos do grupo saúdam-se assim: “Vamos jogar?”

A resposta a essa saudação era pendurar a caixa ali pelo chão, traçar um círculo... e o jogo começava.

Reis! Fedeu! Nada limpes! Com aço não vale! Tudo-tudo, nada-nada! Troques! É meu! (o ponto para jogar primeiro)...e assim...

E assim se iam despejando pelo ar as diversas palavras codificadas, o jargão dos moleques, a gíria ainda criança, a linguagem da rua. E a disputa continuava, acirrada.

Por vezes mudava-se a modalidade do jogo: um buraco no chão, um triângulo, apenas um risco... Daria até uma aula de geometria essa brincadeira...

E o jogo ia animado! Se alguém quebrava alguma regra, cometia alguma infração, era aquela briga. Tá roubando! Não valeu! Devolve tudo... Ás vezes até se pegavam na porrada... Mas no dia seguinte começavam tudo novamente...

Mas tudo se acalmava. Ganhava outro ritmo – também frenético – quando encostava um ônibus.