A aritmética do Velho Eusébio
Hoje acordei com o número três na cabeça e uma saudade enorme no coração.
Os bares estão fechados, e o cinema agora é em casa. Ontem vi o excelente “Meu Pai” (2020), direção de Florian Zeller, cujo título em inglês fluente é “The Father”. Custou-me mais ou menos uma hora e meia de duração e trinta reais de dispêndio, divididos em três parcelas no cartão de crédito. Do filme me lembro pouco, muito do título. “The Father”, está aí uma ótima expressão a atribuir a meu primeiro professor de aritmética não diplomado: o Velho Eusébio. Foi o Velho Eusébio quem primeiro me ensinou a dificílima arte que envolve a lógica dos números.
Minha admiração e predileção ao número três advêm do contato que tive, na infância, com a aritmética desse comerciante por profissão e professor de matemática por vocação. Tinha uma bodega bem fornida e uma caderneta onde fabricava números e somas. Era silábico em letras, mas proficiente em números. Sempre que tinha dever de casa de matemática, recorria ao Velho Eusébio, para subtrair-me as dúvidas numerosas. Graças a seus ensinamentos numéricos, devo algumas aprovações e um castigo disciplinar: três cruéis palmatórias, sentenciadas por minha professora de matemática à época, e dois banhos de cinturão, executados por minha mãe.
Uma manhã, talvez de segunda-feira, a mestra falava à barulhenta e desatenta classe sobre números impares e pares. Em meio à sessão de tortura, escreveu na lousa os números de 1 a 10; em seguida, pediu silêncio no recinto, aparte a priori recusado pela maioria. A mestra insistiu, desta vez em voz alta e grave: “SILÊNCIO!”. E então o silêncio fez-se silêncio, em meio ao qual a mestra inqueriu a turma: “Se 1 é ímpar, dois é par, três é...?”
O silêncio aumentou três casas; alguns alunos esconderam-se, encobrindo a cara com páginas do livro de aritmética; outros deram para paquerar a triste janela, que estava fechada. A mestra insistiu, nesse momento lembrei as lições do Velho, uma especificamente não matemática, que falava do paraíso, morada de Eva, Adão e a serpente. Juntei os nomes, associei ao caso, cheguei à conclusão que, a meu ver, era óbvia, e concluí, em voz baixa, que “Se 1 é ímpar, dois é par, três é... perfeito.”
A professora não ouviu direito, me pediu que repetisse. Eu repeti, e foi minha desgraça. A sala entrou em frevo antecipado, e eu fui ao birô da mestra receber minha recompensa: três palmatórias. Mas antes, tentei dissuadi-la, culpar o Velho Eusébio pelo engano. Tentei em vão. Inútil alegar que, no paraíso, segundo a matemática do Velho Eusébio, três é um número perfeito. A mestra rejeitou minha alegação, e como agravante escreveu um bilhete recomendando à minha mãe que me auxiliasse no dever de casa. Mãe entendeu muito bem a recomendação, e eu recebi mais uma recompensa, desta vez, cinturão no lombo, mas de leve, que, como dizem, pisa de mãe não dói.
O fato é que hoje é domingo, e eu acordei com o número três na cabeça e uma saudade enorme no coração. Uma parte dessa saudade devo ao Velho Eusébio, em agradecimento por suas lições aritméticas, por seu legado de bom cobrador e comerciante pouco inflacionário. A outra metade, devoto à minha velhice. Tenho tido mostras de que estou ficando velho mais rápido que o recomendado pela OMS. Aciono minhas lembranças, e quando alguma delas me socorre, percebo que já tem mais de vinte anos. Todas minhas melhores lembranças são maiores de idade, e isso não é terrível, The Father?