Feliz com Meu Fundo de Garrafa

Foi numa consulta ao oftalmologista que quase saltei da cadeira, isso no meu trigésimo aniversário de miopia, pois agora eu tinha também hipermetropia.

Um nobre doutor me explicou ao perguntar, a senhora está com qual idade? E prosseguiu... Pois é, nessa fase, acontece um tipo de transição, e as pessoas ficam mais propensas a ter aumento do grau ocular, tanto para longe como para perto.

E eu cá com meus botões pensava em silêncio, esse tal de enta é mesmo um engraçadinho, chega já carregado de troços na bagagem e despeja tudo na gente.

Resolvi fazer uma retrospectiva da minha vida, na qual os óculos corretivos e amigáveis fizeram parte.

Que feliz eu fui nos meus anos de ensino fundamental e médio, pude ler e escrever bastante, descobrindo-me no universo de coisas e pessoas.

Quantos versos desde então delineados, saídos de um íntimo emotivo e sonhador.

Noites de estrelas vistas da frecha da janela, enquanto concluía as laudas do meu TCC.

E o meu recorde de trinta e dois títulos lidos para emissão de um artigo de vinte e cinco páginas, isso durante uma crise severa da minha autoimunidade, cujo computador e eu não podiam sair da cama por fragilidades do corpo.

A calada da madrugada sempre me alertava com a luz do celular acenando para mim, e muitas vezes me sugerindo ler mais um pouco.

Não posso mesmo esquecer das tantas vezes que li enquanto o veículo se movimentava, que li enquanto aguardava a consulta médica, que li enquanto o mar me espreitava...

Realmente li e escrevi enquanto vivia e vivo, e meus óculos corretivos sempre compondo o semblante, fazendo parte da trajetória, ajudando a captar os detalhes.

Pensando bem e enxergando melhor ainda, sou feliz com meu fundo de garrafa, estou com um pé nos enta, sobrevivente de uma série de batalhas, disposta ao enfrentamento de outras, com uma memória rica, tempo generoso dedicado a escrita, leitura, e claro, com meu multifocal maravilhoso no rosto compondo meu look todos os dias.

CarlaBezerra