O meu primeiro Neruda (ou: De quando compreendi a Felicidade Clandestina)
Ali estava a história de um eu lírico dilacerado, que já não desejava nada, além do disco do Pixinguinha e o tal Neruda, que lhe foi roubado. A história é nossa velha conhecida: trocando em miúdos, Chico encarna, apaixonado, o homem que bate o portão sem fazer alarde, com a singela impressão de que já vai tarde. Naqueles quase 3 minutos, melodia e música encontram-se no mais bonito carnaval: até que, de repente, decido parar e escutar. Boquiaberta, compreendo que, daquele amor, o eu lírico precisava apenas do Neruda, da poesia, do encanto.
Intriguei-me. Nunca havia lido Neruda. A verdade é que pouco sabia do poeta tão reconhecido. Aliás, sobre poesia, sabia pouco, ainda que sentisse muito. Em meu coração, tive a certeza de que a hora havia chegado: compraria meu primeiro Neruda.
Liguei meu computador entusiasmada e decidi que compraria mesmo a versão digital, que estaria a um clique de distância. Tudo aconteceu muito rápido: de repente, em minha frente, estava “O Coração Amarelo”, pronto para ser descoberto.
Cliquei ressabiada: a que será que se referia o eu lírico de “trocando em miúdos”? Quais verdades encontraria naquelas palavras?
Já nas primeiras páginas, encontrei a resposta: ali, bem na minha frente, estava a mais profunda metamorfose vocabular. Ele poderia estar nos dizendo tudo, ou nada, ou até outra coisa: a verdade é que caberia ao leitor desbravar cada um daqueles versos. Aquelas rimas tão pensadas e metrificadas escondiam os temas mais simples do cotidiano: de repente, de tanto andar em uma região que não figurava nos livros, Neruda se acostumara às terras tenazes, em que ninguém lhe perguntava se os agradava os alfaces. Ele, de tanto não responder, tinha o coração amarelo...
Poderia ele estar falando de tudo, de tanto... senti, subitamente, que, assim como eu, ele se sentia só: em meio a amigos que só sabiam falar de si, ninguém lhe perguntara sobre suas novas terras: ele seguia, não respondendo e, é claro, escrevendo.
De repente, ao avistar por detrás da minha janela, vi que o dia passara depressa. Estive tão imersa naquelas palavras que quase não percebera: naquela sexta-feira, eu já não era a mesma. Aquele tinha sido o meu primeiro Neruda. Curiosa, decidi prosseguir: “cem sonetos de amor”, era o novo mundo em minha frente.
Apaixonado, ele poetizava sobre sua amada: “em teu abraço eu abraço o que existe”, disse a ela, o meu novo poeta.
Naquelas páginas, ele tudo dizia e, anestesiada, olhava em minha volta para verificar se alguém notaria o turbilhão de pensamentos que atravessava meu coração. Como contar o que se seguiu? Súbito, lembrei-me do meu conto preferido, que agora fazia sentido.
Neruda falava sobre tudo e queria por inteiro compreendê-lo: fingia que não o tinha, só para sentir o susto de o ter. Estava estonteada e não disse nada. Desliguei o aparelho, e tentei o esquecer. Horas depois, abri-o, e fechei-o. Abri-o e fechei-o. Era isso, eu já sabia: criaria as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina... que era a felicidade.
Súbito..... não era mais uma menina com seu livro, eu era, assim como Clarice, uma mulher com seu amante.