Memórias de Ninguém
Ninguém nasceu em dia e local ignorados.
De pai e mãe desconhecidos. Na verdade, a única presente no parto foi a mãe; o pai tinha abandonado. E a mãe, tão logo pode, deixou o filho.
Até os 3, viveu de abrigo em abrigo
Ninguém se interessou pelo seu passado, embora, ainda criança, tinha um passado
Aos 9 descobriu um lar. Foi viver com pessoas que sabia que ninguém dele queria saber. Para essas pessoas Ninguém, ignorado de pai e abandonado pela mãe, era apenas mais um, por que se importar, por que se comover
Ninguém também sabia que aquela gente não sua gente. E viveu escondido entre sonhos e desejos. Porém, como tantos outros, era apenas mais um nesse mundo de ninguéns
Aos 15, descobriu a primeira perda a olhos nus. Viu partir sem um adeus aquele que dizia tê-lo adotado. E ninguém viu Ninguém chorar. Superou, afinal, Ninguém já era vivido.
Com 15 anos já era um cara vivido. Nascera em dia e local ignorados. Sem passado sabido, sem presente e com um futuro incerto, Ninguém era mais um entre tantos. Só, Ninguém sabia que a morte da mãe, da mãe...adotiva, um ano antes da daquele que dizia tê-lo adotado, tinha sido uma morte voluntária. Mas para os jornais, para a polícia, a pobre mulher, em tudo, iguais a tantas outras mulheres, tinha sido vítima de um acidente, fatal e lamentável, uma perda irreparável, mas um acidente. Mas ninguém se importou em querer saber. E Ninguém, sem a mãe adotiva, convive com aquele que diz tê-lo adotado. Ninguém sabia que ninguém daria ouvidos se Ninguém contasse o que sabia. "Pra quê, mexer com isso?", " Isso não vai levar a nada", "E a reputação da nossa Família!" ouvia toda vez que tocava no assunto. E ninguém queria saber o que Ninguém tinha pra dizer.
O homem que dizia tê-lo adotado, com Ninguém falava tudo o que ele queria saber, menos de onde veio, como chegou à família, quem era sua mãe, seu pai, onde nasceu...Essas coisas que ninguém se importava, mas para Ninguém...
E foi num dia de final de semana, um domingo, pra ser mais preciso, Ninguém gostava de ser preciso, que aquele que dizia tê-lo adotado, exatamente um ano depois da morte da mãe, da mãe...adotiva, que aquele que dizia tê-lo adotado, partiu. Ninguém, a olhos nus, sem entender o que acontecia, paralisou; estancou, como uma árvore finca raíz, não conseguiu sair do lugar. Ninguém sabia que ninguém queria saber o que realmente acontecera. Pra quê falar de coisas que prejudicam a Família? A imprensa e a polícia, Ninguém não cansava de ouvir, vão querer bisbilhotar tudo. Então, ninguém se importava se Ninguém tinha algo a dizer, ninguém queria saber de picuinhinhas que só alimentam a voracidade da imprensa. E Ninguém se calava.
Hà 30 anos, ninguém sabe onde Ninguém está. Houve um tempo, bastante tempo, que alguém disse ter visto Joãozinho, Pedrinho, Tiaguinho, Juninho, Lucas, Jonas, Manuelzinho....caminhando nas ruas do centro, mas não tem certeza. São tantos. Como saber exatamente.