A tributação dos livros: um novo Fahrenheit 451
O universo distópico de Fahrenheit 451 não me parece mais tão distópico assim, levando em conta o que está acontecendo no país.
Que o governo Bolsonaro não gosta de pobres e não sabe fazer gestão não é nenhuma surpresa. Ainda assim, essa semana reacendeu-se a polêmica da taxação de livros. Um dia após o ministro da Economia, Paulo Guedes, dizer ao mercado que as reformas econômicas deveriam avançar este ano, a Receita Federal, no dia sete de abril, publicou um documento para tirar dúvidas sobre a reforma tributária. Em um dos trechos defendeu a taxação dos livros na reforma porque não são consumidos pelos brasileiros mais pobres.
"De acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019 (POF), famílias com renda de até 2 salários mínimos não consomem livros não-didáticos e a maior parte desses livros é consumida pelas famílias com renda superior a 10 salários mínimos. Neste sentido, dada a escassez dos recursos públicos, a tributação dos livros permitirá que o dinheiro arrecadado possa ser objetivo de políticas focalizadas", defende a Receita Federal no documento, disponível no site do órgão.
A lógica da Receita Federal, que representa bem a ideologia do atual governo, é que a isenção tributária, garantida pela Constituição para a venda de livros - a tributação de livros, jornais, periódicos, e do papel destinado à sua impressão, os quais são imunes nos termos do artigo 150, VI, “d”, da CF/88, está beneficiando apenas os brasileiros mais ricos e, por isso, deveria ser revista, pois é um disparate. Dessa forma, o governo passaria a arrecadar dinheiro com essa tributação e poderia utilizar esse recurso com políticas destinadas aos mais pobres. Não preciso afirmar que isso é uma falácia, das mais vergonhosas.
Na avaliação da Receita Federal, no tira-dúvidas sobre a reforma tributária, "não existem avaliações que indiquem que houve redução do preço dos livros após a concessão da isenção da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins". Logo, se depender do órgão, a venda de livros passaria a ser tributada em 12%, que é a alíquota sugerida pelo governo para a Contribuição de Bens e Serviços (CBS) – imposto que unificaria à atual cobrança das alíquotas de PIS/Pasep e Cofins. A proposta ainda precisa ser analisada e votada pelo Congresso Nacional.
Para além da questão legal ou não da taxação de livros, se fere a Constituição ou não, a discussão é mais profunda do que a noticiada. Discutir se a revogação da imunidade seria politica e economicamente correta, perquirindo se os livros são comprados pelos mais ricos, se as editoras estão em crise ou não, ou se a doação de livros aos mais pobres pelo Poder Público resolveria o problema de acesso ao conhecimento. O fato é que se trata de uma questão muito complexa. É preciso resgatar um pouco de história e entender como chegamos à imunidade dos livros. De antemão, não visava barateá-lo – isso seria uma consequência ou não. Como leciona o deputado constituinte Aliomar Baleeiro, a imunidade inserida na Constituição deveu-se ao fato de que “estava muito recente a manobra ditatorial de subjugar o jornalismo por meio de contingenciamento do papel importado”. Ou seja, a tributação do papel era o meio oblíquo de censurar os jornais.
Logo, evita-se que, por meio do tributo, se exerça, ainda que de forma indireta, a censura. Como já dito, o intuito não é baratear os livros. É saudável que haja muitas editoras com pluralidade de visões e orientações mais diversas e que o mercado dite os preços. Não é tão bom aos leitores, que tem que comprar livros cada vez mais caros. Mas ainda assim, é bom que tenhamos liberdade para escolher – não podemos ter tudo, enfim.
Voltando a brilhante solução da equipe econômica, que o Poder Público iria doar livros aos mais pobres, consegue ser pior que a tributação. O presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), Marcos da Veiga Pereira, afirma que “o Brasil nunca investiu efetivamente em Cultura e Educação, e o resultado está refletido nas posições vergonhosas que ocupamos no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA)”. Em 2020, o país ocupou a 84ª posição em ranking mundial do IDH, e, em 2019, a 57ª do PISA – dados que ainda não refletem o impacto da pandemia do novo coronavírus.
Não obstante, a distribuição de livros pelo governo, desestimularia à produção e à comercialização de uns livros e o incentivo direto de outros (com a compra e a distribuição gratuita pelo governo). As perguntas que ficam são: quem decidiria quais livros seriam doados? Qual político definiria o que poderia ser consumido ou não pela população, mediante a aplicação do custo extra do tributo, e quais seriam doados pelo governo a custo zero para o leitor? Quem definiria qual ou quais ideologias poderiam circular entre as classes menos desfavorecidas? Evidentemente, o tributo poderia tornar proibitivo os livros que o governo não deseja que sejam lidos (criaríamos um novo Index – lista de livros proibida pela Igreja Católica), não se descartando que os que seriam doados, com o uso de recursos públicos, veiculariam as ideias convergentes com as dos governantes. É exatamente o que a imunidade dos livros visa evitar.
É importante ressaltar que a reforma encabeçada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, o mesmo que cujas as entrevistas costumam ter como cenário uma estante de livros completamente vazia – o que eu me pergunto se o ministro, coitadinho, não pode comprar livros, já que são tão caros, ou se é algo proposital, para passar a imagem de quem não liga mesmo para adquirir um mínimo conhecimento, que é superior e não precisa dos livros. O mesmo que ano passado lançou uma “granada” de preconceito de classe ao justificar a elevação do dólar. Guedes afirmou, com soberba, que a alta da moeda americana era benéfica, uma vez que, em um passado bastante recente, até as empregadas domésticas estavam indo para a Disney, “uma festa danada”, segundo ele.
Além de envenenada de preconceitos e da total falta de compromisso com a formação intelectual dos brasileiros, a defesa da taxação de livros revela um desconhecimento da realidade do País. Não é novidade que esse governo não dá a mínima para os cidadãos, basta vermos como está a condução do enfrentamento da Covid-19 no país. De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2020), 46% das pessoas com renda familiar de menos de um salário mínimo são leitoras. Entre aquelas que recebem até dois salários mínimos, 51% cultivam o hábito de ler. Segundo a pesquisa, 27 milhões de pessoas das classes C, D e E dizem que gostariam de ler mais. “São brasileiros que não consomem mais livros porque o poder aquisitivo deles é baixo. Eles querem ler mais”, disse Vitor Tavares, presidente da Câmara Brasileira do Livro. Compramos livros, não porque temos dinheiro sobrando – não temos e é cruel ter que optar entre comprar livros ou comida, mas porque entendemos que a leitura é tão essencial quanto o alimento.
Queremos ler mais. Precisamos ler mais. Porque ler implica em pensar. E pensar implica em questionar. E isso é tudo que o governo não quer que você faça: questionar. Um trecho do livro Fahrenheit 451 exemplifica bem esse questionamento que só os livros trazem: “(...) será porque somos tão ricos e o resto do mundo tão pobre e simplesmente não damos a mínima para sua pobreza? (...) Ouvi rumores sobre o ódio, também, esporadicamente ao longo dos anos. Você sabe porquê? Eu não, com certeza que não! Talvez os livros possam nos tirar um pouco dessas trevas. Ao menos poderiam nos impedir de cometer os mesmos malditos erros malucos!”
Essa é a verdadeira política do governo Bolsonaro: ele trata com descaso a educação, escolhe ministros incompetentes, quer eliminar as ciências sociais, cortou o orçamento das bolsas de pesquisa do Capes e destina mais recursos ao ministério da Defesa do que a Educação e Saúde. E agora a sua equipe econômica, encabeçada pelo seu ministro favorito, quer acabar com o único alento que o povo tem: os livros.
Carolina Maria de Jesus, escritora do célebre livro “Quarto de despejo”, escreveu que “todos têm um ideal. O meu é gostar de ler.” Eu te entendo, Carolina. O meu também é. E deveria ser o de todos. Os livros deveriam ter seu acesso democraticamente impulsionado pelo governo, não o contrário. Um país livre só o é se for um país de leitores. Contudo, a liberdade provoca medo a quem está no poder. Mário Vargas Llosa diz que “um público comprometido com a leitura é crítico, rebelde, inquieto, pouco manipulável e não crê em lemas que alguns fazem passar por ideias”. Quem ler não aceita tudo o que ouve de forma passiva. É um questionador. É indagador do mundo e de quem se é. É um incompreendido e subestimado por infringir assombro.
Em nosso país se instaurou nos últimos anos um projeto de imbecialidade e boçalidade massiva. A escritora feminista negra Bell Hooks já escreveu que os governantes querem negar o acesso aos livros sob o argumento de que “ler é um luxo, e não um direito”. Ler é uma das necessidades mais básicas. Sem a leitura, nada podemos almejar a ser. “Então, vê agora por que os livros são tão odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. As pessoas acomodadas só querem rostos de cera, sem poros, sem pelos, sem expressão.” Ray Bradbury, autor de Fahrenheit 451, nunca me pareceu tão atual para o momento presente, em que indiretamente, o governo quer fazer uma nova fogueira para consumir os livros, já tão escassos em nossas estantes.
#Defendaolivro