Contaminado
Testou positivo numa manhã que o sol lhe abria sorriso, e que acordou com a ponta de esperança do fato não se confirmar. Naquele instante faltou saliva, deu nó na garganta, os olhos marejaram e o medo despertou a falência numa mistura de gelo, de ausência de consciência e direção.
Parou no trânsito, ali o sinal verde ou vermelho pouca diferença fazia, mas era necessário escolher um caminho, então decidiu chorar brandamente, mentalizando seus próximos passos enquanto o coração desacelerava um pouco.
Chegou em casa, alguns já sabiam, ninguém mais no caminho dos corredores e cômodos até então coletivos. Sentiu dolorosamente seu dever, a sina de um infectado que inspirava cuidados, e como se uma seta estivesse apontada para si, abriu a porta do quarto, isolou-se, começando sua maratona para sobreviver com o vírus numa missão imaginável de defender-se e evitar propagação.
No quarto montou praticamente um cenário de guerra, de combate, as vezes cenário de novela com fatos inacreditáveis, embora a calma era um dos alvos, esta muitas vezes faltava, assim como o ar, o paladar, o olfato.
Fatos que não foram delírios de um louco, fizeram parte de uma realidade desafiadora e global, foi daí que a imaginação subiu pelas paredes, constatação da extrema fragilidade dos seres humanos diante de uma atmosfera aterrorizante.
Um campo minado aguçava-se na mente cansada a toda hora, havia álcool derramado, máscaras e descartáveis junto ao banquete medicamentoso, kit anti, suplementos, dieta balanceada, dor que não passava, saudade de ver gente, de abraçar alguém no pranto, servir para algo que não fosse apenas poder transmitir e hospedar enfermidade.
Surge uma vídeochamada na tela do celular, vivia conectado, dúvida imediata, atender ou fingir que não viu, era um parente próximo com muita idade e diagnósticos crônicos do outro lado da linha, o que dizer quando a imagem desmentia o "estou bem".
O medo nunca teve tantas vertentes, tinha medo do controle da TV, do pronunciamento do ministro da saúde, do pesquisador renomado, sentia calafrio ao ouvir o toque do telefone, de retirar o termômetro pressionado ao corpo, do prato cheio de legumes sem a companhia do apetite. Era latente o medo da morte, da vida, da despedida, de perder ou encontrar saída, medo do nada, de tudo e do talvez.
Amedrontado, acamado, invalidado, proibido de sonhar, porque sonhar dava medo, bloqueou no pensamento sua progressão de vida, o desfazimento de alguns percalços, a sua transformação por inteira.
Quando tinha tempo para se espiritualizar e aguçar a fé, concentrar em sentir paz, dormia na condição de anestesiado pelo efeito dos remédios.
Dias de self melindrosa, dias debaixo das cobertas, dias de decadência, clemência, dias de doação, gratidão, amor, compaixão, vida a conta-gotas, dias de descobrir que de tudo, quase nada era essencial, e que o essencial passou muitas vezes despercebido.
Na sombra do contagioso, o contaminado subsistiu, fitou a vida como se expectador de um mundo que não pariu nem criou, após muitos dias, entre a casa e o hospital, internação, ventilação, entubação na tentativa de não entrar numa reta alta da estatística desumana, testou negativo, e mesmo assim, continuava desiludido, tinha somente uma existência oprimida, uma ideia vaga do que fazer, a sua única certeza era não esquecer tudo aquilo que pareceu proposto para lhe enlouquecer. Fatidicamente, tornou-se um voluntário de oportunidade, cuja chance não trouxe com ela, rótulo indicando validade.
CarlaBezerra