Sobre o voto de Nunes Marques

Sem surpresa, Kassio Nunes Marques foi um dos ministros do Supremo Tribunal Federal (o outro foi Dias Toffoli) que votaram a favor da liberação de celebrações religiosas presenciais na pandemia. Segundo ele,

"se o cidadão brasileiro quiser ir a seu templo, igreja, ou estabelecimento religioso para orar, rezar, pedir, inclusive pela saúde do próximo, ele tem direito a isso, dentro de limites sanitários rigorosos."

Mas se Deus é onipresente, ele atende a domicílio, não?

Acredito que Nunes Marques tenha ouvido falar de João 4. Nesse capítulo, a samaritana interlocutora de Jesus afirma que, segundo os judeus, só é possível adorar a Deus em Jerusalém (versículo 20). Deus estava no templo. Assim, outros povos não tinham acesso a Ele.

Opa, pera um pouco aí, não é bem assim, de acordo com Jesus. Para o Messias (não o chefe de Marques, e sim o nazareno dos evangelhos), já naquele momento, o verdadeiro adorador "adorará em espírito e em verdade" (versículo 23). Em outras palavras, não precisa de templo ou outro local físico e específico para adorar a Deus.

Em Atos dos Apóstolos 17, lemos que Paulo chegou, acompanhado, a Tessalônica, onde encontrou um altar com os dizeres "ao Deus desconhecido". Coincidência ou não, a divindade anônima era exatamente aquela que o apóstolo anunciava (e que o ministro diz crer). Ele repreendeu os adoradores: "O Deus que fez o mundo e tudo que nele há, sendo Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens" (Atos 17:24).

Eu poderia apenas dizer que o voto de Nunes Marques tem congruência com a fala da samaritana (sobre lugar específico para adorar) e com a forma de culto dos tessalônicos que dialogaram com Paulo, mas há mais coisas no céu e, principalmente, na terra que ajudam a entender esse voto muito mais do que meros argumentos teológicos.

Sabe-se que Jesus e Paulo viveram durante a vigência do Império Romano. Ou seja, foram contemporâneos do modo de produção escravista. A mercadoria ainda não havia se tornado reinante nessa sociedade.

É notória aquela passagem dos evangelhos em que Jesus expulsa os comerciantes do templo. Trata-se da descrição de uma prática "primitiva" de mercado, sem o caráter capitalista. Um pequeno comércio, podemos dizer assim. Em contraste com o "grande comércio" e com a acumulação de capital, cujas condições sociais foram essenciais para a a produção das mercadorias dominar totalmente a economia, segundo o teórico Guy Debord (1931-1994).

Marques e as igrejas, por outro lado, vivem numa sociedade capitalista, posterior a três revoluções industriais. O mundo da mercadoria "que se apoderou de tudo" é aqui e agora. Nem a fé escapa do "espetáculo". Assim, o ministro e as grandes instituições religiosas cristãs não estão preocupados meramente com a "vida cristã em comunidade", mas sim com arrecadação pecuniária.

Manter um grande templo evangélico ou católico hoje é muito diferente do que era manter o Templo de Herodes. Há uma nova lógica de funcionamento sistemático de acordo com o modo de produção capitalista. Surgiram, por exemplo, custos com aparatos tecnológicos que eram inimagináveis no tempo de Jesus e instituições cristãs atuais adotam uma configuração (informal) similar a uma organização empresarial, mimetizando até as relações de trabalho: o pastor, por exemplo, torna-se um pastor-empresário ou pastor-empregado. No fundo, o argumento para manter igrejas abertas é o mesmo utilizado para manter o comércio aberto: impedir a perda de lucros.

É conveniente para o administrador de templos cristãos ignorar versículos como João 4:23 e Atos 17:24. Se os fiéis seguirem plenamente a doutrina do "Deus pode ser adorado em qualquer local", as igrejas vão quebrar.