TIO ZEQUINHA

Telefonema de manhã cedo geralmente não traz boa notícia.

Prima Dindinha deu bom dia e desatou a soluçar a desgraça: “O vírus mortal pegou o Tio Zequinha”. Completou: “Anteontem, ele amanheceu com tosse, respiração ofegante e um pouco febril”.

Sonolento, revirei a memória na busca da figura de Tio Zequinha. Era o irmão caçula de minha falecida mãe. A imagem que surgiu tinha mais de trinta anos. Eu deveria ter uns sete ou oito anos. Tio Zequinha sentado na cadeira de balanço no alpendre da casa grande fazendo cigarrinhos de palha. Minha mãe alertava sobre os sofrimentos de um enfisema. Ela parecia adivinhar.

Os primos ainda moravam todos no mesmo terreno do sítio.

Dindinha, a primogênita, não logrou casar-se e ficara para tia. Coube-lhe o rude mister de cuidar do Tio Zequinha, já com sinais de doenças degenerativas, prenunciando o final próximo.

Falava em tom de desespero: “Levamos ao Pronto Socorro... Deram um remedinho para a febre e, se não melhorasse, voltar no dia seguinte”.

Continuou, aos solavancos. “Ontem... internamos... Tio Zequinha”.

Sensação estranha abateu-me.

Percebi que nunca tivera a mínima saudade do Tio Zequinha.

Significava para mim, nada além de uma dessas pessoas que passam, a gente dá bom dia... boa tarde... e nem olhamos quem era.

Meus pais moraram em Santana até eu e meus dois irmãos chegarmos a puberdade. No pequeno vilarejo não havia opção para os jovens. Se alguém, por lá nascido, prestasse aos estudos, a esperança era conseguir uma vaga na Faculdade da cidade maior. Eu lograra êxito no curso de engenharia e meus dois irmãos formaram-se em Direito.

À maioria das crianças o destino: Mão de obra primária na lavoura.

Nem dava atenção às palavras da prima: “Hoje, pela manhã, disseram que chamariam o 192, para levá-lo à Santa Casa de Uberlândia ou a um hospital de Belo Horizonte... Além da gravidade do estado de Tio Zequinha, o Oxigênio estava acabando”.

Esfregando os olhos, respondi, de modo formal, que fizessem o melhor pelo Tio Zequinha e mantivessem-me informado para alguma emergência ou desenlace.

Esforcei-me e vieram-me imagens de minha mãe contando passagens da vida do Zequinha.

A vida não lhe fora leve.

Perdera a vontade de viver, quando Nonatinho, seu filho mais novo, morreu, vitimado por um marido ciumento dos olhares penetrantes. De matuto tagarela, o tio tornara-se homem de pouca conversa.

Antes, além do bom papo, Tio Zequinha era invejado pela vizinhança, devido a sua estabilidade financeira. Trabalhara, antes das privatizações, muitos anos na Cia. Vale do Rio Doce, cargo concursado de Auxiliar de Almoxarifado, que hoje lhe garantia proventos de aposentadoria do fundo de pensão e provia o sustento dele e das famílias dos primos.

Mamãe tinha uma atenção diferente pelo Zequinha. Irmã mais velha, substituiu a sua mãe - vó Rosinha ou Dona Generosa -, quando esta faleceu. Referia-se carinhosamente de tio Zequinha e diz que fora bonito e sedutor.

Entre risinhos, comentava que à proximidade de moça bonita, um olhar provocante se abria no rosto do Zequinha. Às moças mais bonitas de admirar, arriscava um gracejo e seguia até bem distante.

Era o desespero dos pais de moças solteiras, sem negar fogo às casadas que se aventurassem. Fizera mais de quinze filhos não reconhecidos.

Quando mamãe repetia a história, meu pai, intrometia-se, rindo e garantindo que era apenas fama.

Esforcei-me para não gargalhar.

Tio Zequinha seria versão da lenda urbana do Boto?

Do casamento com a tia Belinha foram oito rebentos. Restavam três vivos. Dindinha e os primos Dudu e Zico.

Doenças da infância levaram dois. Duas moças morreram de parto.

Depois da morte do Nonatinho, raras palavras de ouviam de tio Zequinha. Incomodava-se com o barulho da criançada, em alvoroço, pelo sítio em dia sem escola. O medo e algum temor reverencial afastava as pessoas.

Senti alguma tristeza e curiosidade de não ter conhecido melhor o Tio Zequinha.

O tempo agora, era escasso.

Quando Dindinha ligou, no meio da tarde, a frase foi curta: “Tio Zequinha partira”.

Avisei meus irmãos e como tivessem ocupações, coube-me ir, sozinho, o mais rápido que pude para Santana.

Encontrei os primos conversando, à porta da Morgue.

Pêsames costumeiros, perguntei se poderia ser útil.

Percebi-os relutantes na escolha do caixão e disse que ajudaria com as despesas.

Sorriram tristes e agradecidos, definiram-se rapidamente por um modelo simples, que paguei integralmente, prometendo-me devolver o valor.

Enquanto Dindinha reconhecia o corpo, o funcionário alertou da impossibilidade de abrir-se o caixão e apenas vinte minutos para eventuais orações.

Ao receber os documentos do senhor da funerária, finalmente, soube o nome de Tio Zequinha.

Como a maioria dos Zequinhas era um simples José.

José Raimundo Nonato.

Ou, para sempre e simplesmente, o Tio Zequinha!

De quem não guardo outras lembranças, mas não quero esquecer.

Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 07/04/2021
Reeditado em 07/04/2021
Código do texto: T7226223
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