Me redimindo com meu diário.

(@andreaagnus)

Que tipo de escritora tem um diário que fica esquecido por um ano?

Como se carecesse de angústia, de abismos ou de novas indagações sobre si. Porém, vejam só, a grande ironia da escritora que abandona diários está no seu fluxo contínuo de escrita. Não para. Sejam crônicas, contos ou poesias, lá está ela estimulando teclados frenéticos, sedentos, como se derramasse a si mesma em ficções, mas sobre sua realidade não diz uma só palavra. Sou como folhas recicladas sem propósito de existir. Sou o espantamento. O inventariante de uma dor que está lá, tão profunda que nem a mim ela ousa contar.

Que tipo de pessoa é essa que se diz artista das letras, com tantos textos publicados, e me trata com um descaso impensável?

Logo eu, que tenho o projeto de ser imortal. Logo eu, que poderia ser encontrado, anos depois, desfalecido em velhas gavetas e poderia me tornar uma coisa grande, sonora e falar para tanta gente quem ela foi, de fato!

Mas, não. Estou aqui. Recebendo essas palavras como se fossem esmolas, um mero exercício de escrita criativa. Ela parece não me respeitar. Me dá lugar de fala, mas meu papel é ficar mudo, meu propósito está na escuta. Me diz, ao menos, se você está bem.

“Querido diário,

Estou muito feliz e realizada! Somente no início deste ano, já publiquei em três coletâneas e lancei um e-book de contos de forma independente.”

Uau...que bom! Mas, o que se passa contigo? Que história você está escrevendo de si mesma e qual legado está construindo na sua vida? O que tua alma quer expressar?

Nossa! Sempre foi assim. Foram os outros que me disseram. Bastava ela ter um novo romance ou está animada com um novo emprego, que já ia se declinar neles ou sobre mim, filosofando sobre cada detalhe do acontecimento ou sentimento.

“Desde que eu e Lídia terminamos, eu nunca mais namorei ninguém.”

Ano 2018. Está registrado aqui. Ela parece nem se importar. Contudo, eu sei bem de quem ela gostaria de falar.

Certa vez, apareceu para mim, o espírito de um diário azul em chamas. Ele me contou que o primeiro amor dela era sua única temática de escrita. Além disso, confessou para mim o crime dela. Que tipo de pessoa incinera a própria vida? Que tipo de gente se desapega de tudo o que mais amou? Que mulher é essa, capaz de dilacerar aquele que veio antes de mim? Bem... esse último já se trata de outro espírito, uma alma penada que vi arrastando correntes em brochuras rasgadas.

Talvez, morrer como os grandes heróis da mitologia grega seja melhor do que o esquecimento. Acredito que ela não quer me encarar. Ela tem medo do que possa me contar e, depois, ficar dias refletindo sobre o curso da própria vida.

Nesses últimos dois anos, seu único anseio é criar arte para outros: “jogar seus escritos no mundo”, como diz o bordão que ela andou aprendendo. Claro que não vou ser injusto de dizer que aquilo que ela escreve não tem qualidade literária. Mas, o que ela coloca da sua essência? Daquela pulsão que nasce no peito, depois é decodificada pelo cérebro e, por fim, flui por entre os dedos, se esparramando em folhas em branco?

Continuo sem saber...

“Querido diário,

Eu nunca escrevi tanto em toda minha vida...”

Ah! Minha querida, Agnus! Você já falou essa frase antes, as almas penadas dos outros diários contaram para mim. E não era sobre processo criativo que você confessava...

... tudo sempre foi por amor!

Ass. [seres inanimados não assinam textos].

Andréa Agnus
Enviado por Andréa Agnus em 06/04/2021
Reeditado em 06/04/2021
Código do texto: T7225361
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