Compaixão

Já faz algum tempo, em um sábado, levantei bem cedo, me arrumei e sai para ir trabalhar. Como tenho esta cena não muito turva na memória, posso conferir que fazem entre três e cinco anos, pois tenho a cor da moto, que eu tinha na época, bem viva: era branca. Lembro também de como é tranquilo e prazeroso ir trabalhar quando não se tem trânsito algum; dá para notar, observar e refletir com mais calma do que na correria e agito dos dias normais. O normal está cada vez mais degradado pela ganância do ser urbano.

Na viagem, de casa ao trabalho, foi tranquila, com os companheiros de sempre: pensamentos alheios ao meu momento, mas nem por isso menos atentos à realidade. A atenção e, até diria, olhar de compaixão foi o que me trouxe aqui, hoje, para descrever o que me imprimiu, na alma, aquele momento.

Eu já estava com mais da metade dos vinte quilômetros percorridos quando avistei uma cena que me angustiou instantaneamente: uma senhora, com a cabeça branca como a minha moto; cabelos um pouco curtos, mas do tamano que puderam ser presos com descuido; as faces, tocadas pelo tempo, exibiam uma pele de papal de rascunho; olhos que falavam "obrigado" a todo momento; uma boca na qual faltava o agradecimento, na mesma proporção que os dentes; altura mediana; as roupas eram o figurino perfeito para a cena; nos seus pés tinham umas meias de lã grossa e dividida nos dedos pelo havaianas que se mostrava peregrino. Ela estava revirando o lixo de umas residências ao lado de um posto de combustível. Naquele momento um mundo de possibilidades se passou pela minha alma: parar ou seguir viagem; ajudar ou seguir viagem; ter compaixão ou seguir... Parei!

E foi bem este o nosso diálogo:

— Senhora... a senhora está aí mexendo no lixo... olha aqui, tenho um negócio para a senhora — fui falando e tirando a mochila das costas para assessar minha carteira.

Peguei algumas notas avulsas, sem nem olhar se tinha algum cinco reais no meio daquele engalfinhamento de tartarugas. Mas depois fiz contas mentalmente de quanto havia na minha carteira. Sim, tinha uma nota de cinco no meio das duas de dois. Naquele exato momento, onde eu vinha de encontro àquela senhora que nem sei o nome, pensei no bem que estaria lhe fazendo. Minha imaginação, muito antes de eu chegar perto daquela senhora, já havia formado um teatro em minha mente:

"Olha essa senhorinha vasculhando o lixo. Aposto que ela está procurando algo para comer. Sim, e ela pode ter uns netinhos famintos em casa. Nossa!!! Dê uma moedinha para ela, vai!! Mas, credo! Em que uma moedinha vai ajudar ela? Ela precisa, acima de tudo, ser tocada por alguém! Sim!!!! Ela precisa de calor humano! Mas só de parar para dar uma moedinha já é algo. Não! No mundo urbano as pessoas têm valor, assim como os sentimentos... mas o valor que vem impresso no papel! Está compreendendo? É mesmo!!! Tenho que dar umas notas para ela saber que me compadeci de sua lamentável situação!"

E depois de tanto pensar naquele dia, construí uma espécie de forma romântica de perceber o ato de tocar a velhinha: dois prazeres colidindo-se em um ato promovido pelo valor dado o ser urbano e o valor que o ser urbano dá ao papel em uma cena que se repete e perdura no teatro chamado civilização. Um sentindo sempre um prazer velado em dar; o outro sente um prazer íntimo em receber sem esforço.

Tudo o que você acabou de ler são meus devaneios, pois a única coisa que realmente aconteceu quando dei as notas para a pobre senhorinha foi ela me falar esta frase:

— Agora já posso fazer meu jogo...

Não tive nenhuma reação além de virar as costas, subir na moto e continuar minha viagem. Minhas reflexões se prenderam na falta de tato da senhora para com seu bem feitor. Como se ela estivesse me dizendo que aqueles trocados só iriam fazer alguma diferença em sua vida se ela acertasse a sena na loteria, mas de uma forma nada amena, e até diria que ela usou um tom que ficou entre o áspero e desaforado. A única coisa que posso dizer é que eu andei torcendo para que aquela velhinha tenha ficado milionária com a minha ajuda. Desde o início a minha intenção foi, de alguma forma, fazer a diferença na vida dela.

Diego Crevelim
Enviado por Diego Crevelim em 06/04/2021
Reeditado em 22/04/2021
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