LAGARTEADAS E PINHÕES NOS TERREIROS DE TIA LUCINDA

12:40 do dia 04/04/2021 – Domingo.
Cá onde me encontro, reina um friozinho básico. A surrada jaquetinha desceu do cabide com seu cheiro da última frente fria enfrentada e , generosamente, agasalhou-me.
Quarentena ? Corona virus ? Assunto proibido !
[ lembram-me os enxeridos botões da minha camisa, aliados agora, ao zíper da jaqueta ]
Sou todo ouvidos e decido virar o disco.
Reina um silêncio profundo nesta casa...A cara metade embrulhada em edredons, atirou-se nos braços de Morfeu. O “mais novo”, aquele à quem ainda chamamos de “nosso piá”,bandeou-se para a casa de amigos.
Resta-me a companhia de “Morena” a nossa gatinha, que deitada no sofá ao lado, tá nem aí para a presença desta carcaça que ora digita.
Abro a cortina e o dia lá fora é azul.De um azul intenso,varado de sol.
Alquém cruza a rua enfiado num agasalho.
[ Um ventinho maroto e frio, vai varrendo “coisas de abril” ]
O pensamento, feito passarinho, ainda que eu tente um bloqueio, voeja !
E nestes “voejares”, por mais que eu decida mudar a rota, eis-me livre, leve e solto, uma vez mais, na “Rua do Fomento”.
Aterriso numa manhã de inverno.
A geada já derreteu-se e o sol cálido das dez da manhã é convite a uma gostosa lagarteada.
A risada sonora de dona Vica me chega aos ouvidos, delatando  aconchegos no terreiro da casa de tia Lucinda.
Entonces...
É pra lá que eu vou.
No melhor estilo repolho ( casaco sobre a blusa,duas calças, dois pares de meia, botina,luva e cachecol ) vou me achegando diante do portão ao longo da cerquinha de ripas.
“Bolinha”, a cachorra de estimação,é a primeira a acolher-me com seu latido festivo.
Alguém “esquenta o corpo” rachando lenha num terreno vago ao lado da casa.
O canteiro de alfaces está morto pelo gelo da manhã e os pardais disputam espaços sobre o telhado.
Ardem as chamas no meio do terreiro.Sobre a trempe, na panela de ferro ( daquelas com tetinhas ) os pinhões rebolam-se freneticamente como que sentissem cócegas.Espalham pelo ar o odor característico do fruto mais amado no frio sulino.
Tia Lucinda, enfiada em seu casacão marrom, com o inseparável lenço à cabeça, sentada em seu banquinho tripé, é a personificação de uma majestade naquele reino onde o palácio é de tábuas,sem pintura e as couves – viçosas – quase alcançam os beirais.
A carijó arma um alvoroço e na  fuga deixa um ovo fresco quase à mostra na boca da fornalha.
[ Galinhas adoram por os ovos ao fundo das fornalhas ]
Dona Vica, entre um sorriso e outro, troveja um chimarrão com muitas ervas de cheiro no entorno da cuia.
Vez e outra lança mão na tigelinha e degusta mais um bolinho de polvilho, especialidade da dona da casa.
Cresce o pão na amassadeira, na cozinha o feijãozinho borbulha em caldeirão de ferro sobre o fogão e tia Lucinda, de concha em punho, apanha na panela de tetinhas ao meio do terreiro, um punhado de pinhões cozidos e oferece-me com a pergunta:
- Queres um cafésinho “bem doce “ pra acompanhar?
[ Ela sabia de antemão qual seria a resposta, então...]
Não demorava e juntávamos – meus primos e eu – para assembléias que decidiriam quais seriam as atividades do dia.
[ A mata, seus frutos e exuberância, era sempre a escolha do dia ]
O campo, com a grama ressequida, era um vasto tapete por onde tínhamos pés no chão e corações no infinito.
Araticuns amarelos e sumarentos esperavam por nós mata a dentro.
Guincha lá fora , neste instante, um pássaro solitário. Não consigo defini-lo , mas seu guinchado melancólico me arranca abruptamente da rua de minha infância e meus devaneios evanescem.
Novamente, diante do monitor, encaro agora a dura realidade, a incerteza e os temores destas tempos em que estamos vivendo.
Mas...Sou curioso.
Abro a porta, ganho o jardim, e busco o solitário senhor deste começo de tarde.Sua imagem me chega ao campo de visão feito um pontinho escuro perdido no espaço azulado deste domingo.
O guinchando prossegue à distância.
Postado sobre a calçada, liberto dos labirintos do peito aquele pássaro que mantenho preso.
Ele voa ! Alcança o outro.
Então, lado a lado, guinchamos nossas soledades neste domingo azul, tão distante da panelinha de tetas da casa de tia Lucinda, tão mudo nas gargalhadas de dona Vica e ao mesmo tempo tão presente na azulada lembrança que me persegue , daqueles dias em que o único comprometimento era só dar uma boa lagarteada...
No terreiro da casinhola de Tia Lucinda.