Crônica de Páscoa

Tarde fresca. O sol ardido e o vento frio tinham a cara de Rubem Braga, devia ser a segunda semana do Outono. Casa cheia. Mesa farta. As crianças -- sobrinhos e primos pequenos --, corriam, gritavam, caíam, choravam. O consolo vinha na forma de cafunés, beijos e abraços generosos. Antes de colocarmos um fim definitivo na harmonia dos pratos sobre a mesa -- era uma mesa belíssima! --, rezamos. O patriarca que já vivera a Páscoa mais de setenta vezes, não se importava em disfarçar os lábios trêmulos da emoção de se ver diante dos seus -- e eram tantos! Na tevê na sala adjacente, um primo brigava com um tio pela primazia de escolher, dentre a infinita variedade do conteúdo da rede, algum vídeo do seu interesse -- ou do interesse de mais dois ou três que tomassem o seu partido. Foi-se o tempo em que não tínhamos escolha: Faustão, Silvio Santos, fofocas, tortas na cara, biquínis, tombos, trapalhadas; um besteirol sem fim. Nesta tarde, contudo, graças à internet, víamos, boquiabertos, leões comerem búfalos -- sem censura.

À mesa todos sorriem, riem; entrementes a um e outro gole de suco de caju, dão gargalhadas. A tarde segue farta de explosões de alegria. As palavras ditas pelo patriarca, antes de nos lançarmos à comida, permanecem no ar, preenchendo a atmosfera com a consciência de uma solenidade. O que aconteceu? O que celebramos? É importante não esquecer o que dá liga à vida. É a fé. Nosso Senhor ressuscitou, e por isso celebramos! Há uma prima grávida que recebe os olhares afetuosos do seu avô; seu filho, novo membro do clã, está para nascer. Em que mundo essa criaturinha viverá? No mundo que nós criarmos. Depois do almoço -- que não foi um almoço, foi um banquete --, uns passaram para a sala ao lado, outros permaneceram sentados à mesa, com os olhos miúdos e um sorriso sutil nos lábios. Não houve Missa, não houve Culto; ninguém foi para a Igreja. Ninguém teve gosto de assistir às suas celebrações religiosas pela tela do computador, do celular ou -- o que seria mais prático, pois reuniria a todos -- pela tevê. É de mau gosto.

As conversas, reanimadas pelo café, ganharam novo vigor. A tarde cresce, o ventinho frio torna-se gélido e, com a despedida de alguns dos presentes, vem a melancolia. Os que ficam -- são sempre os que ficam --, fazem comentários, outros comentários. É a política, é a pandemia, é o medo do desemprego; são os doentes e os que morreram de Covid que agora assumem a tônica das conversas. Eu notei que não havia ordem nas discussões; os assuntos vinham e passavam sem nenhuma cerimônia, sem nenhum prólogo. Notei que apenas um dentre nós usava máscara. Eu sei que entrego a mim e todas as pessoas da minha família às truculentas autoridades sanitárias por dizer isso. Deus nos acuda! Não houve macarrão, mas o arroz com frango e azeitonas coberto com mussarela fez o maior sucesso, foi o prato principal. Havia um priminho, um anjinho serelepe, que passava sob as pernas dos que estavam sentados à mesa. Ele era todo brincadeiras, todo risadas, todo alegria. O vovô, com o louvável pretexto de dar um lição de catequese ao netinho -- e também para fazê-lo parar de andar de gatinhas debaixo da mesa -- tomou-o nas coxas e começou a contar a história da Páscoa, da primeira Páscoa. "Sabia que Páscoa quer dizer 'passagem'?", perguntou o patriarca. "É vovô?", disse o netinho. "Sim, Páscoa vem do hebraico, 'Pessach' e significa 'passagem'", completou o vovô. "Hebraico, vovô, o que é 'hebraico'?" "Ora, é a antiga língua dos hebreus, do povo de Deus que vivia como escravo no Egito. Eles falavam hebraico, meu filho". Nesse momento o menino empalideceu, saltou do colo do vovô e começou a dar pulinhos de alegria. "Eu sei! Eu sei! Eu sei!", gritava ele. "Sabe o quê, meu filhinho?", perguntou seu avô. "Eu sei que língua os egípcios falavam, vovô! Eu sei! Eu sei!". Atônito, seu avô perguntou "qual?" atraindo a atenção de todos para a curiosa sabedoria do garotinho serelepe. "Mandarim! Os egípcios falam mandarim, vovô!". Alguém deixou uma xícara cair na cozinha. Mudava-se assim de assunto, mais uma vez.

Vitor Marcolin
Enviado por Vitor Marcolin em 04/04/2021
Código do texto: T7223897
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