Rede Walmart e Sexta-Feira da Paixão
Disse que acho uma extravagância esse ritual de guardar a Sexta-feira da Paixão. Disse ontem, véspera de Sexta-feira da Paixão, à noite e a um público composto de mais ou menos uma pessoa, dois bancos numerosos e algumas várias latas de Brahma, vazias. Estava naturalmente sob os efeitos etiliológicos de brahmose, cedinho, antes da madrugada, e da sobriedade, e do café forte de mãe. A sentença, como é comum nesses momentos, me saiu irrefletida e pecaminosa. Reconheço que pequei. Agora, manhã, mais ou menos sóbrio, após tomar o café vigoroso de mãe e ao vê-la tratar com tanto zelo esses peixes sobre a pia, venho me retratar. Dizer que não há excesso no ritual milenar que envolve a data.
A abstinência à carne, o jejum, as rezas, embora possam parecer práticas impróprias a um descrente, devem fazer algum sentido redentor aos que acreditam na ressurreição da carne e na vida eterna, amém. Não creio, beleza, mas não posso impedir nem censurar quem o faz. Chamam isso, o ato de conviver com as diferenças, de suportar incongruências particulares e alheias, dar-se o nome de tolerância. Bonito nome, capaz, inclusive, de compor o título de uma formosa reza: “Eu tolero, tu toleras, ele tolera, nós toleramos, vós tolerais, eles toleram. Assim na terra como cielo. Amém.” Uma reza solidária e abrangente, capaz até de substituir nosso verborrágico e estrangeiro hino nacional.
Nas escolas, nas formaturas, nos jogos da seleção canarinho, na posse presidencial substituiríamos o nosso hino nacional, o verborrágico e estrangeiro, “[...] O lábaro que ostentas estrelado [...]”, por: “Eu tolero, tu toleras, ele tolera, nós toleramos, vós tolerais, eles toleram. Assim na terra como cielo. Amém.” Um hino singelo, sem mugangas verborrágicas, fácil de decorar, cuja missão seria estimular tolerância em meio à intolerância; unir rede wi-fi, praticidade, comodidade e modernismo.
As Sextas-Feiras da Paixão possivelmente continuariam existindo por um razoável tempo. Seus rituais não seriam alterados, pelo menos a curto prazo. Mas a abstinência à carne, o jejum, as rezas, com a disseminação dos supermercados e o avanço dos paralelepípedos sobre o barro, é possível que esmaecessem, fragilizassem-se ante o progresso e a rede wi-fi. Talvez chegasse o fatídico dia em que não mais haveria Sexta-Feira da Paixão, e muitos crentes comeriam carne enlatada, refrigerada e pré-cozida, comprada na rede Walmart, na ex-Sexta-Feira da Paixão, sem se dar conta de que, de acordo com práticas outrora, estariam rompendo tradição cristã.