O lusco-fusco

Despertei ás seis da manhã com meu celular alarmando. Mas não fazia mais de uma hora que eu tinha agarrado no sono. Cabeça a milhão pensando nos "e se" da minha existência a partir dali. De uma ótica a longo prazo a situação parecia insignificante, mas pra quem ama o exagero é inerente.

Levantei com muito pesar e preparei meu café da manhã no modo automático. Em silêncio e olhando pra o nada, como sempre fazemos ao acordar e sentar na cama, refleti sobre o dia anterior. Preparei-me pra sair com o pensamento que talvez o trabalho me distraísse dessas amarras dos problemas amorosos da vida. Engraçado como o amor nos faz ser bobos e demasiar as coisas, sejam nas partes felizes quanto nas partes dolorosas dele.

Cheguei ao trabalho e montei um sorriso social, talvez isso ajudasse pra começo de conversa. Falei com alguns colegas e amigos, marcando reuniões para churrascos que todos sabemos que nunca iriam acontecer. O plano estava surtindo efeito, nenhum rosto desconfiado me perguntando se tinha acontecido alguma coisa. Então eu a vejo, a chefe da empresa. Ângela era uma mulher de estatura baixa, na faixa dos seus quarenta anos, muito esperta, sagaz, simpatia em pessoa. É uma dessas pessoas que encontramos na vida que nos trazem conhecimento quando falam, do tipo de fazer você sentar no chão com as pernas cruzadas e palmas das mãos no queixo só a ouvindo contar as histórias. Ela lia seus sentimentos com o olhar. Indo contra todo o fato de chefes malvados, Ângela era muito querida, sempre sorridente, conversava com todos, comigo inclusive, já que nossas famílias são amigas.

Ela chegou dando bom dia a todos como sempre, entrou na sua sala por um tempo, depois saiu e chegou à minha sala sorrindo:

— Vou precisar da sua ajuda, meu querido. O computador não está ligando, e hoje o técnico não veio trabalhar. Me faça esse favor?!

Como todo estudante de TI, as pessoas te veem e logo pedem alguma coisa, que às vezes nem fazem parte da sua área:

— Cara, me ajuda, meu computador parou.

— Eu não sei o que houve, a impressora não quer imprimir.

— Meu chuveiro não está esquentando, socorro!

Fui de bom grado, sempre existe aquela pontinha de satisfação quando alguém pede socorro a você. E também a Ângela sempre me tratou bem. Entrei na sala e desinstalei o computador. Enquanto eu desparafusava, calado, ela quebrou o silêncio:

— Aconteceu alguma coisa? E o seu namoro, como anda?

Como eu disse, nós conversávamos e nos conhecíamos. Já havíamos conversado bastante sobre coisas de amor e namoro antes. Também já tinha contado da crise que rondava meu relacionamento de cinco anos. Dois amantes unidos precocemente, sem experiência, mas amadurecendo.

— É, aconteceu mesmo alguma coisa, a gente decidiu terminar ontem.

— Eu falei sem a olhar nos olhos.

— Ah não, eu pensei que ia dar certo! — disse ela com um olhar desanimado.

Depois do "assopro mágico" na memória do computador, remontei e fui instalá-lo novamente, enquanto falava:

— Nós conversamos bastante, analisamos bem, e achamos melhor terminar. Mas, por mais que seja uma decisão importante e difícil, sinto que ainda amo ela. Mas também sinto que não tem como continuarmos mais. É estranho, mas enfim, é isso.

Testando e observando que tudo estava certo com o computador, sentei na cadeira na frente da sua mesa e ela virou sua cadeira pra o meu lado.

— Você tem certeza disso? — disse ela com o cotovelo na mesa e a mão no queixo.

— Estou tão confuso, mesmo sabendo que não tem como levar isso pra frente, ainda continuo a amando, e dói vê-la partir. — falei, ora olhando pra baixo, ora olhando em seus olhos. Eu estava envergonhado, aquela mulher sabia mesmo ver nossos sentimentos desnudos.

— Olha filho, vou te dizer. Um relacionamento longo desse jeito, toda decisão é importante. E esse resultado é algo que vai ficar marcado pra o resto das suas vidas. É um sentimento ruim que não resolveria nem que vocês pudessem voltar ao passado e trilhassem outro caminho. O amor é assim, é desse jeito que se amadurece. — Disse Ângela me fitando.

— Eu não sei, começamos tão jovens, não temos experiência alguma. Eu sinto que a amo, mas também sinto que isso não vai a lugar algum. Acho que precisamos crescer separados, talvez juntos estamos nos afogando, agarrando um ao outro, e afundando. — Eu falei tentando acompanhar o tom do tipo de conversa madura.

— Você deve ter ouvido quando liguei pra Renata outro dia...

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Naquela semana nossa chefe estava de atestado médico. A Renata era minha colega de sala, tão amiga da Ângela quanto eu. Enquanto jogávamos conversa fora ela me cochichou sobre um homem que morava em sua rua e que naquele dia acabara falecendo de um problema no fígado:

— Já estou imaginando como a Ângela vai digerir essa notícia.

— Ele era conhecido dela? — perguntei.

— Você não sabe? Eles já foram namorados quando eram mais jovens. Conheceram-se na faculdade. Dizem, eu não sei, que eles se amavam muito, tipo de amor de cinema. Mas chegou uma época que ela estava mais querendo curtir a vida, não queria compromisso. Ele ficou arrasado quando ela terminou tudo, na mesma semana já a viram com outro. Mas ele não deixou de amar ela, mesmo depois de ter arrumado outras namoradas quando via ela na rua, largava da menina e ia conversar com a Ângela. Depois disso ele casou e teve filhos. Ele morava na minha rua, e desde que soube da batalha dele contra a doença, ela sempre me pedia por notícias. — Destrinchou Renata.

— Nossa! Nem sei o que dizer, ela vai ficar arrasada.

Nisso o celular da Renata tocou e ela me balbuciou: É ela!

Em seguida ativando o viva-voz:

— Oi Ângela, bom dia!

— Bom dia querida, e então como ele está? — disse com a voz de quem acabou de acordar.

— Olha Ângela, não sei com dizer isso, você está sentada? — perguntou Renata me olhando preocupada.

— Não, mas, por favor, me fala!

— Por favor, fica calma, então, recebi a notícia que ele não resistiu ao tratamento e faleceu hoje de manhãzinha. Sinto muito… — falou isso cabisbaixa.

Então nesse momento nossa chefe desaba em um choro copioso:

— Não, não, não!

— Não fica assim, mulher — a Renata fala tentando ajudar.

Nesse momento a ligação é encerrada e Renata eu ficamos nos olhando sem saber como reagir.

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— Então filho, aquele homem e eu namorávamos, tínhamos nos conhecido na faculdade. Foi estilo filme tudo que vivemos, primeiro beijo na praia, à luz da lua. O melhor namorado que eu tive, foi o tipo de amor que pode se dizer que foi o amor da minha vida. Mas não sei o que houve comigo, se foi conselho das amigas, ou esse fervor da adolescência que me fez pensar que eu era nova demais pra algo sério. Eu o amava, mas amava mais a minha liberdade. Eu errei, admito. Então, com isso eu quero te dizer que isso é uma decisão difícil, se você acha que existe uma chance, não deixe essa menina escapar.

Eu a ouvia falar sem interromper.

— Com amor da minha vida, não quer dizer que eu não amo meu marido e meus filhos. Eu amo demais meu marido, amo demais meus filhos, e a vida que temos. Mas um amor como aquele eu nunca mais vivi na minha vida, nem vou viver. A notícia da morte dele me abalou demais, fiquei remoendo esse sentimento. Fiz ele sofrer demais. Então pense bem meu filho.

Depois que saí da sala dela, fiz o meu trabalho, ocupando minha mente, e então fui pra casa. Ao chegar e guardar as chaves, vejo uma mensagem no meu celular: "Foi melhor assim. Espero que seja feliz, e espero que eu também.". Então eu tive a certeza. Tudo estava feito. Tomei um banho para lavar a alma. Abri um vinho e fui para a varanda de casa. Eram cinco e meia da tarde, o céu estava com um tom alaranjado, dourado, mesclado com o preto da noite. Com a taça na mão, me vi matutando o que passou, no que virá, e na conversa que tive com minha chefe. Acho que talvez seja isso mesmo. Todos nós teremos um grande amor na vida, aos pessimistas e desiludidos essa concepção é uma idiotice, uma ideia louca dos românticos. Mesmo sendo uma verdade de que nenhum amor é igual ao outro, esse é diferente, tem um q de alma gêmea. Enquanto eu beberico o vinho as coisas vão se encaixando. No final das contas a realidade é que se você tiver uma má sorte de não se casar com o amor da sua vida, não se preocupe. Não é por causa disso que você nunca vai encontrar alguém pra amar, alguém que te desafie a dar o melhor de si, alguém que vai cuidar bem de você, te dar todo o amor e carinho que você merece, vocês vão viver ótimos momentos, transas incríveis. Você vai casar, ter filhos, vai ser muito feliz, mesmo que não seja com o amor da sua vida. E quando formulei isso na minha cabeça foi quando percebi que a Ângela estava certa, é assim que se amadurece.

Termino minha taça olhando o breu da noite engolindo o céu...

Tássio cp
Enviado por Tássio cp em 01/04/2021
Reeditado em 01/04/2021
Código do texto: T7221671
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