ENCOMENDAÇÃO OU FOLIA DE ALMA
Hoje em dia, esses costumes estão praticamente desaparecidos no município de São Roque de Minas, mas recentemente fiquei feliz ao saber através da Nena e do Reinaldo, proprietários da Pousada Tapera da Serra, que no município de Delfinópolis, Região da Canastra, ainda se preserva essa tradição.
Na época do meu avô, meados do século passado, no município de São Roque de Minas, região da Serra da Canastra, as tradições da Quaresma, eram seguidas com profundo respeito. O ritual acontecia em várias localidades rurais como Guiné, Serrinha, Buracas, Beira da Serra...
Não se podia cantar alto, ouvir rádio, comer carne dia de sexta-feira, cortar cabelo, fazer pagodes ou mutirões. Era tempo de jejum, abstinência, penitência e rezas. Os santos eram cobertos com um pano roxo. Dizia-se que o “coisa ruim” ficava solto. Tempo perigoso de aparecer assombração, lobisomem e almas penadas, nas estradinhas e encruzilhadas que davam acesso às fazendas. Tais imagens povoavam o imaginário popular.
Um costume daquele tempo era a “Recomendação das almas, Folia de almas, Tirar para as Almas”. São muitas variantes, mas o objetivo era encomendar as almas do purgatório aos cuidados de Deus, por meio de orações, a fim de aliviar-lhes as penas, para que alcançassem o descanso eterno.
A encomendação era realizada às segundas e sextas-feiras da Quaresma, quando a escuridão se estendia pela encosta e o choro do velho monjolo se misturava ao canto do curiango, a noite inteira. Os lobos uivavam no morro, a onça pisava sorrateira nas folhas da copaíba, farejando um bezerro desavisado no pasto. Homens e mulheres podiam participar.
Todos reunidos ao redor do cruzeiro ao pé da serra. Envoltos em lençóis brancos, saíam às 10 horas da noite. O ritual consistia em visitar nove ou dez casas. Se a noite estivesse muito escura, podiam levar candeias ou lamparinas. Vovô Joãozinho e seu compadre Pedro, guardavam de cor as rezas e regras a serem observadas. Minha mãe, avó e as vizinhas sabiam os cânticos de cor e os entoavam emprestando ao ato um tom triste e piedoso.
Com as matracas e os berra-bois, saíam de casa em casa; os encomendadores de almas, até a madrugada, com cantos fúnebres e arrepiantes. O Capitão do grupo anunciava a chegada diante de uma residência, jogando um punhado de pedras no telhado. A família não podia abrir a porta e nem acender as lamparinas. Jamais olhar pelas frestas, sob pena de ver seres do outro mundo.
Quando alguém mais incrédulo se atrevia, levava pedradas. Os moradores costumavam deixar uma gamela com quitandas numa mesa posta no terreiro. Dentro da casa, as crianças apavoradas, choravam de medo com o barulho das matracas. Até os adultos tremiam.
Meu avô Joãozinho, era o capitão e cantava:
— Acorda, acorda, pecador!
Lá dentro alguém respondia:
— Pecador num tá dormino!
— Assim como Deus num dorme,
— nóis tamém num durmiremo.
Todos ficavam quietos e rezavam em silêncio enquanto lá fora a turma dos encomendadores dizia:
— Nessa casa mora gente
— Que vai ficá cum Deus!
Sem jamais olhar para trás, lentamente caminhavam noite adentro cantando. Acreditava-se que se alguém da procissão olhasse para trás, veria as almas, pois, estas seguiam o grupo até o final do percurso, aguardando a sua hora de ganhar salvação.
Outra coisa interessante é que ninguém podia abrir porteiras ou colchetes. Era preciso passar por cima ou por baixo dos mesmos. Quando uma pessoa mais idosa ia junto, precisava de ajuda para subir nas porteiras. Isso tudo fazia parte da penitência. Minha mãe conta que acompanhou muitas procissões e não raras vezes, acontecia muita coisa inesperada aos caminhantes noturnos.
Em algumas ocasiões eram atacados pelos cães de guarda das fazendas. Nessa hora não havia como não quebrar as regras. O dono da casa tinha que sair e prender os animais. Era uma correria de gente gritando e subindo nas tábuas do curral, se embaraçando nos lençóis, fugindo da cachorrada.
Assim seguia a romaria noturna, sem nunca voltar pelos mesmos caminhos. Quando os galos ensaiavam os primeiros cantos e as árvores ficavam cheias de canarinhos anunciando a aurora, chegavam à última casa. Nessa hora podiam ser recebidos com uma farta mesa de café e quitandas.
O ritual só terminava na sexta-feira da Paixão, à meia noite, ao pé da cruz das almas. Então, todos ajoelhados, cantavam uma música antiga, os mistérios do terço, finalizando com esses versos:
— Santa Maria Imaculada,
— Mãe de Nosso Senhor Jesus
— Por Ela, nos abençoa e guarda.
— Em nome da Santa Cruz!
* Tapera da Serra - Pousada e Restaurante, (Vale da Gurita/Delfinópolis) me enviou todas as fotos!
Hoje em dia, esses costumes estão praticamente desaparecidos no município de São Roque de Minas, mas recentemente fiquei feliz ao saber através da Nena e do Reinaldo, proprietários da Pousada Tapera da Serra, que no município de Delfinópolis, Região da Canastra, ainda se preserva essa tradição.
Na época do meu avô, meados do século passado, no município de São Roque de Minas, região da Serra da Canastra, as tradições da Quaresma, eram seguidas com profundo respeito. O ritual acontecia em várias localidades rurais como Guiné, Serrinha, Buracas, Beira da Serra...
Não se podia cantar alto, ouvir rádio, comer carne dia de sexta-feira, cortar cabelo, fazer pagodes ou mutirões. Era tempo de jejum, abstinência, penitência e rezas. Os santos eram cobertos com um pano roxo. Dizia-se que o “coisa ruim” ficava solto. Tempo perigoso de aparecer assombração, lobisomem e almas penadas, nas estradinhas e encruzilhadas que davam acesso às fazendas. Tais imagens povoavam o imaginário popular.
Um costume daquele tempo era a “Recomendação das almas, Folia de almas, Tirar para as Almas”. São muitas variantes, mas o objetivo era encomendar as almas do purgatório aos cuidados de Deus, por meio de orações, a fim de aliviar-lhes as penas, para que alcançassem o descanso eterno.
A encomendação era realizada às segundas e sextas-feiras da Quaresma, quando a escuridão se estendia pela encosta e o choro do velho monjolo se misturava ao canto do curiango, a noite inteira. Os lobos uivavam no morro, a onça pisava sorrateira nas folhas da copaíba, farejando um bezerro desavisado no pasto. Homens e mulheres podiam participar.
Todos reunidos ao redor do cruzeiro ao pé da serra. Envoltos em lençóis brancos, saíam às 10 horas da noite. O ritual consistia em visitar nove ou dez casas. Se a noite estivesse muito escura, podiam levar candeias ou lamparinas. Vovô Joãozinho e seu compadre Pedro, guardavam de cor as rezas e regras a serem observadas. Minha mãe, avó e as vizinhas sabiam os cânticos de cor e os entoavam emprestando ao ato um tom triste e piedoso.
Com as matracas e os berra-bois, saíam de casa em casa; os encomendadores de almas, até a madrugada, com cantos fúnebres e arrepiantes. O Capitão do grupo anunciava a chegada diante de uma residência, jogando um punhado de pedras no telhado. A família não podia abrir a porta e nem acender as lamparinas. Jamais olhar pelas frestas, sob pena de ver seres do outro mundo.
Quando alguém mais incrédulo se atrevia, levava pedradas. Os moradores costumavam deixar uma gamela com quitandas numa mesa posta no terreiro. Dentro da casa, as crianças apavoradas, choravam de medo com o barulho das matracas. Até os adultos tremiam.
Meu avô Joãozinho, era o capitão e cantava:
— Acorda, acorda, pecador!
Lá dentro alguém respondia:
— Pecador num tá dormino!
— Assim como Deus num dorme,
— nóis tamém num durmiremo.
Todos ficavam quietos e rezavam em silêncio enquanto lá fora a turma dos encomendadores dizia:
— Nessa casa mora gente
— Que vai ficá cum Deus!
Sem jamais olhar para trás, lentamente caminhavam noite adentro cantando. Acreditava-se que se alguém da procissão olhasse para trás, veria as almas, pois, estas seguiam o grupo até o final do percurso, aguardando a sua hora de ganhar salvação.
Outra coisa interessante é que ninguém podia abrir porteiras ou colchetes. Era preciso passar por cima ou por baixo dos mesmos. Quando uma pessoa mais idosa ia junto, precisava de ajuda para subir nas porteiras. Isso tudo fazia parte da penitência. Minha mãe conta que acompanhou muitas procissões e não raras vezes, acontecia muita coisa inesperada aos caminhantes noturnos.
Em algumas ocasiões eram atacados pelos cães de guarda das fazendas. Nessa hora não havia como não quebrar as regras. O dono da casa tinha que sair e prender os animais. Era uma correria de gente gritando e subindo nas tábuas do curral, se embaraçando nos lençóis, fugindo da cachorrada.
Assim seguia a romaria noturna, sem nunca voltar pelos mesmos caminhos. Quando os galos ensaiavam os primeiros cantos e as árvores ficavam cheias de canarinhos anunciando a aurora, chegavam à última casa. Nessa hora podiam ser recebidos com uma farta mesa de café e quitandas.
O ritual só terminava na sexta-feira da Paixão, à meia noite, ao pé da cruz das almas. Então, todos ajoelhados, cantavam uma música antiga, os mistérios do terço, finalizando com esses versos:
— Santa Maria Imaculada,
— Mãe de Nosso Senhor Jesus
— Por Ela, nos abençoa e guarda.
— Em nome da Santa Cruz!
* Tapera da Serra - Pousada e Restaurante, (Vale da Gurita/Delfinópolis) me enviou todas as fotos!