OS MEDOS DE CADA UM
As crianças da minha época tinham medo coisas, como o Boi da Cara Preta, Bicho Papão, Papafigo, Lobisomem e o Velho do Saco, entre outros. Dou um doce e uma cocada a um adulto que nasceu e cresceu nesta Terra de Poty, que não tremesse dos pés à cabeça, ao ouvir alguém falar sobre a viúva Machado. Esta viúva, segundo a lenda urbana potiguar, era a versão feminina do Papafigo. Para prolongar seus dias de vida, ela precisava se alimentar com fígado de crianças.
Eu também tinha medo de muita coisa, especialmente de escuro e de qualquer coisa que tivesse a cor vermelha. Em Baixa-Verde, minha cidade de origem, a energia elétrica ficava disponível somente até às 22:00h. Depois desse horário todas as luzes se apagavam e os moradores recorriam à iluminação proveniente dos lampiões à base de querosene.
A casa da minha avó, onde todos os filhos, netos e genros se reuniam à noite para ouvir as histórias mirabolantes do meu avô, era iluminada por um destes lampiões, dos quais eu morria de medo. As sombras que os lampiões projetavam nas paredes, pareciam, aos meus olhos de criança, monstros horrendos cujos tentáculos davam a impressão de que queriam me pegar.
Meu pai me salvou do medo do escuro. Eu devia ter uns quatro ou cinco anos de idade, e me encontrava sozinha na sala da casa da minha avó, quando o vento apagou o lampião. Todos os adultos estavam na cozinha e para que eu chegasse até eles, teria que atravessar um corredor, que aos meus olhos parecia extenso e escuro demais. Meu pai, vendo o meu desespero, disse: venha que eu não deixo nenhum mal lhe acontecer.
Eu então, corri e me joguei nos braços dele e o que ele me disse naquele momento, acabou o meu medo do escuro e ficou gravado na minha mente: Ele disse que quando eu sentisse medo de alguma coisa, enfrentasse-o, porque somente assim eu o venceria. Desse modo, passei a enfrentar o medo do escuro até vencê-lo.
O medo das coisas pintadas de vermelho, eu não faço a menor ideia de onde, nem como surgiu. Lembro-me que em certa ocasião, chegou à cidade um circo enorme. Era comum, quando um circo chegava à cidade realizar um grande desfile mostrando suas atrações, para despertar o interesse do público.
Meu tio muito empolgado para assistir à apresentação do Globo da Morte, número onde dois motociclistas guiavam, simultaneamente duas motos dentro do Globo, se prontificou em levar minha mãe, minha tia, eu e meus primos para o espetáculo de abertura. Eu, juntamente com meus primos, estava muito entusiasmada até chegarmos diante do circo e eu ver que suas cortinas eram vermelhas e voavam ao sabor do vento.
O que eu via naquele momento, não eram cortinas vermelhas. Eram monstros e fantasmas uivantes, com braços enormes tentando me pegar. Eu caí no choro sem que ninguém soubesse a razão e não teve cristão capaz de me fazer entrar no lugar. Meu tio ficou muito aborrecido, mas minha mãe contornou a situação voltando comigo para casa. No dia seguinte eu tive que aturar o abuso dos meus primos, que não falaram de outra coisa a não ser as maravilhas que viram no circo.
Este medo me perseguiu por muito tempo. O vermelho, para mim, representava apenas coisas ruins, que me causavam angústia e um medo profundo, mas eu não sabia explicar a razão.
Anos mais tarde, eu já estava com 10 anos, quando novamente chegou um circo à Cidade. O Circo Teatro Paraense. Não era tão grande como o anterior, porém mais interessante, porque como sugeria o nome, na segunda parte do espetáculo era apresentada uma peça de teatro. Os componentes da Filarmônica de Baixa-Verde foram contratados para animar os espetáculos. A Filarmônica era composta por meu pai, Agostinho Tintim, Geraldo Alves, Bi, Boneca, Manoel Avoête, Deca e muitos outros de saudosa lembrança.
Como meu pai era integrante da Orquestra, tanto minha mãe quanto eu podíamos assistir aos espetáculos gratuitamente. E assim, quase todas as noites nós estávamos lá, ocupando um lugar VIP. Eu gostava demais das peças teatrais. Foi através dos espetáculos do Circo Teatro Paraense, que tive meu primeiro contato com o teatro e foi nesse circo que assisti a peças como a Louca do Jardim, Ferro em Brasa, O Céu uniu dois Corações e muitas outras.
Uma das peças que mais me impressionou e causou medo, não consigo recordar o nome. A história falava sobre um casal que vivia feliz com os filhos. Em dado momento eles se separam e cada um fica com um filho. Coleman, era o nome do pai, que mesmo separado continua a observar a vida da mulher e da filha. Durante a juventude dos filhos, Coleman permite que eles se aproximem, mas ele não revela o parentesco que os une. Os jovens acabam se apaixonando e se casam, com o consentimento do pai.
O casal só descobre que são irmãos, por ocasião do nascimento do primeiro filho - cuja figura ainda é mais horrenda do que o Corcunda de Notre Dame. Para piorar a situação do medo em que me encontrava, o ator entra em cena usando um roupão de seda vermelha. Meu medo era tão grande e o meu coração batia tão forte, que me dava a impressão de que todos ouviam o barulho.
No final da trama, o neto descobre que sua deformação se deve ao fato de ser filho de dois irmãos. Ele fica tomado pelo ódio, então chora e grita todo o rancor, repugnância e ódio que sente pelo avô. Então, o estrangula com as próprias mãos. Eu quase nem respirava mais.
Ao fim do espetáculo, eu estava trêmula e ansiosa para encontrar meu pai. E foi novamente ele, quem colocou um ponto final nesse pânico pelo vermelho. Quando lhe contei a experiência vivida com a peça, ele disse: Vamos dar um jeito para acabar com seu medo de vermelho. No dia seguinte, ele me presenteou com um casaco vermelho, o qual eu fui obrigada a usar para prestigiar o presente. Assim perdi o medo de vermelho.