Amar - quase - elo
Cresci ouvindo minha mãe dizer que não desejava o mal de ninguém, até hoje, sempre que possível, ela me reproduz essa frase: eu não desejo o mal de ninguém. Apesar do exemplo sincero e prático da minha mãe, aquelas palavras sempre me pareceram muito estranhas. Como não desejar o mal de ninguém? A primeira resposta encontrada para essa pergunta foi na religião, no cristianismo. A resposta era muito simples e muito prática: ser como Jesus.
Então, bem, Jesus disse para que, em caso de um tapa na cara, déssemos o outro lado da face para que outro tapa fosse dado; a resposta, em si, não me convencia, mas estavam me dizendo que eu deveria ser como Jesus, e Jesus não é bem o tipo de cara que se explica muito bem, o negócio é muito mais “vem e no caminho eu te explico” do que “senta aí que eu vou te contar antes como vai funcionar o esquema”. Para além disso, durante um tempo, essa explicação me foi suficiente, esse estilo de vida voltado ao face-tapa-face-tapa, me foi útil, não foi de todo mal, muitas coisas ali aprendi, mas não era o suficiente… havia algo mais, nunca é possível acreditar na via mais simples de um problema quase filosófico.
Não sei dizer exatamente quando essa explicação deixou de ser verdadeiramente útil, ou quando esse deixou de ser o meu estilo de vida. Acho que como tudo na vida, foi aos poucos, de forma gradativa, um dia após o outro, uma mudança tão rápida por milissegundo, que chegava a ser imperceptível, a única certeza que tenho é que essas mudanças de milissegundos começaram depois que eles venceram e o sinal ficou fechado para nós, que somos jovens. Sim. RÁ. Política. Essa crônica fala de política. Não há como fugir dela. Foi quando essa festa estranha com gente esquisita, começou, que a ideia básica de não desejar o a começou a parar de fazer sentido. Mas, parou de fazer sentido só para mim, para todos ao meu redor, aquele ensinamento continuava sendo crível.
Meu ceticismo não veio em função da pandemia, mas veio concomitante a ela, o que significa que paulatinamente as coisas foram sendo modificadas. No primeiro estágio, me lembro bem, estive odioso, eu odiava aquela gente estranha dizendo que tudo se tratava de uma gripezinha, odiava seu desdém e hipocrisia, odiava tudo neles, não os desejava mal, afinal, não foi isso que aprendi, o ódio também era algo recriminado. Um pouco vigiado. Um pouco policiado. Um pouco em estado de sítio. À medida que as coisas pioravam, os sentimentos em mim, também. Em setembro, atingi o segundo estágio, um vizinho, amigo da família há anos, morreu. Jovem. Não teve filhos. Não se casou. Não teve tempo de construir nada. Morreu sem ar. Sufocado. Nos braços da sua irmã mais velha.
Ali, se instalou a fase de não desejar o mal, odiar, mas desejar justiça e, no fundo, ao final do dia, desejar que aquela justiça fosse minimamente terrível, porque era isso que essa gente merecia. Era o que merecia alguém que faz uma mãe chorar.
Entre a segunda e a terceira etapa houve o meio do caminho: não te desejo mal, mas não te desejo bem. Não desejar o mal já me parece ser bastante coisa, especialmente quando há razões efetivas para se desejar o mal. Ainda que não haja, desejar o bem é uma ótima ação, mas não deveria ser uma obrigação, pelo menos é como eu penso. Não sei, me parece muito mais um dever papal do que meu, que estou bem longe dos padrões sacerdotais. Não significa que eu fique por aí inerte, eu desejo o bem para muita gente, mas há casos em que simplesmente não há o que desejar.
Então, enfim, chegamos na terceira e última etapa. 300 mil mortos pela covid-19 no Brasil, mais de 50 mil contaminados por dia, mais de 3 mil óbitos por dia. Enquanto tudo isso ocorre, a vacinação segue a passos lentos, seja na produção ou na execução,concomitante a tudo isto, há um governo negacionista e pessoas que se negam a enxergar o óbvio, ainda insistem em temas velhos, como aglomerações e medicações para tratamento precoce. Vocês sabem o vizinho que morreu sem ar nos braços da irmã? Em pouco mais de seis meses, aquela mãe enlutada perdeu sua segunda filha, vitimada pela mesma ingrata e maldita doença. De uma família enlutada, vamos para uma família destruída e marcada pela morte de pessoas amadas em decorrência de uma doença que já possui vacina.
Não enxergo um cenário onde não seja possível desejar um triste fim a todas essas pessoas egoístas que saem de casa sem necessidade, aqueles que conduzem minha pátria tão amada a um destino de pária entre as nações. Tudo bem. Quer saber? Eu não ligo, dane-se toda essa superioridade moral, eu desejo, tudo de ruim para essas pessoas, talvez haja karma, talvez não. Mas, se houver, há punição maior para aqueles que estão tão desesperados, assustados e enfurecidos como eu? Não vejo uma realidade onde isso que estamos vivendo não seja o próprio karma. Patriotismo vai além do amor a pátria, significa também amar aqueles que vivem na pátria, sejam eles nativos ou não.
Não posso desejar o bem àqueles que deliberadamente agem com desdém pela vida, que compactuam com este cenário de morte que vivemos, onde uma septuagenária senhora, que deveria ter um final de vida tranquilo e sem problemas, tem que enterrar dois de seus filhos. Onde um recém-pai tem que lidar com o luto da amada que se foi, vitimada por essa doença, sem poder viver o sonho materno, acho que sem poder ver seu filho. Não posso querer o bem de que une forças para que uma jovem menina cresça sem o amor de seu pai, que morreu vitimado por esta doença. Não posso me esforçar para amar aqueles que fazem com que pais e mães saiam de caso atrás de um inseguro sustento, porque o governo não se preocupou em gerar qualquer tipo de renda aos moradores da periferia. Não tenho como amar quem acha que paz se constrói com tiro. Não posso, não quero e não consigo desejar algo de bom para essas pessoas. É como diz o Didico: “Que Deus perdoe essas pessoas ruins”.
Enlutados que perderam pais, amigos, parentes, filhos, os amores de suas vidas, recebam meu mais sincero afago, meu mais sincero abraço não físico, minha mais sincera condolência, minha mais sincera dor. A vocês eu desejo que o amor seja amarelo, o vínculo de todas as cores. Que a vida volte a ser possível. A vocês desejo todo o bem possível.
Quanto aos demais, aos negacionistas: eu sinto muito, Emicida, você disse que o amor perdoa o imperdoável e resgata a dignidade do ser. Mas você consegue amar quem tira a dignidade do ser e o direito à vida?
O amor é latente, potente, preto, poesia... ainda não tô pronto pra liberar ele pra essa gente ruim.