O TREM DE CARGA E A ESTAÇÃO DOS CAMPOS DORMENTES...

É impossível contar sobre o que ainda está ali.

A história sempre começava nas minhas férias escolares, menina ainda, quando a euforia dos próximos três meses de recesso seria desembarcar naquela estaçãozinha do paraíso.

No início era só tempo que passava sem a sensação do desperdício.

Afinal, como desperdiçar aquilo que nos parece eterno?

A linha do caminho tinha seu ponto de partida na Estação da Luz de São Paulo, cuja viagem para o noroeste do Estado, à terra de minha mãe, durava nove horas.

Curioso que aquelas horas pareciam uma vida inteira.

Que ansiedade de chegar...a esperar o grito do guarda que finalmente anunciava a minha estação.

Colocar o pé na chegada era algo mágico, de sensação indescritível.

Só com o tempo a gente aprende que nenhum tempo tem estação de parada definitiva na plataforma infinita do "para sempre".

Lembro-me que, certa vez, já pré-adolescente, consegui do meu pai a primazia de viajar sozinha sem avisar a italianada que, com entusiasmo, sempre me esperava chegar. E acho que já escrevi sobre essa conquista.

Foi uma surpresa quando lá cheguei de repente.

Naquela época, a família era tão enorme, que a nossa mesa lotava para as festividades com pelo menos umas trinta pessoas.

Eu sempre sumia em meio àquela multidão.

Numa pontual viagem ,conto que apresentei meu bilhete ao guarda- que o picotou com a expressão sisuda- bem como apresentei, toda orgulhosa de mim, a minha autorização do "juizado de menores "para ali viajar e, pela primeira vez, embora sempre pequena, me senti bastante gente grande.

Naquele caminho, também lembro dum fato curioso e me pergunto por que um rapaz desconhecido , ao descer bem apressado na sua estação chegada, antes passou por mim, se aproximou e clicou uma rápida e instantânea "polaroid" do meu rosto a se ir para o nunca mais.

Fiquei cismada com aquele ato...que sempre me perpassa a lembrança.

Lembro que eu havia caprichado no batom vermelho cereja, na camisa feit apela minha mãe, de cambraia branca com gravata em laço de fita acetinada; nos brincos de argola e no chapéu, esse último que me é indispensável até hoje para viajar pela linha do meu tempo.

O trem seguiu e todas as minhas paisagens da cidadezinha mudaram.

A estaçãozinha, que hoje revela a História e arquitetura já esquecidas, a que se repetiam no auge da era ferroviária no Brasil, parece que emudeceu, embora seja tela abstrata das minhas chegadas espevitadas da infância e das partidas de volta à realidade da vida que seguiria após as férias, donde eu voltava levando comigo a família e os amigos que ali ficariam até a próxima vez.

Assim eu retornava sempre a inspecionar os detalhes das paisagens a passar e a ficar para trás das janelas do trem, soluçando com um nó na garganta-coisa que ninguém via- por pelo menos cento e cinquenta quilômetros da linha férrea, querendo ficar ali na estação do sempre.

O para sempre nunca chegou.

Dia desses, conversando com um familiar já idoso pelo aplicativo "Whatsapp", a indagar da sua vacinação em meio à nossa Pandemia, de súbito, sem aviso prévio sem autorização do guarda, ouvi o apito do mesmo trem entrar ao longe pelos meus ouvidos, como se pela tecnologia da linha da vida me apitasse que ainda é possível chegar.

Senti um choque sinestésico do agora trem de carga.

Somo coincidentes nos destinos.

Imediatamente os perfumes de casca de laranja e do café recém coado maquinaram pelos ares adentrando a memória das minhas narinas.

E de súbito o meu guarda gritou "-ESTAÇÃO PARA SEMPRE!".

Ao ouvir aquele ruído da máquina desabafando seu trabalho exaustivo na plataforma, o som inconfundível que desperta todos os dormentes das linhas de ferro, peguei minha pouca bagagem e, sem bilhete de embarque ,correndo catei meu chapéu e saltei do tempo para o interior do meu trem que ainda segue, certa de que o destino à estação do infinito está logo ali, ao alcance do dentro de mim.

Então , arregalei os mesmos olhos de criança e segui deslumbrada, olhando pela janelinha todas as paisagens que carrego dos meus quiescentes campos dormentes.

Eu estava enganada: a estação do "para sempre" existe.

Basta ouvir o anúncio da sua chegada.