Cagalhões engomados
A minha saudosa mãe contava-me muitas histórias do meu pai, falecido ainda jovem. Algumas, relacionadas com a sua carreira militar de oficial do exército e sobre as suas comissões no ultramar, no tempo em que Portugal ainda tinha as suas colônias em África. Eu era um garoto que gostava de ouvir esses relatos, sempre atento aos detalhes e às peripécias.
Certa vez, a propósito da sua longa carreira profissional e a respeito das hierarquias e dos colegas que passaram pela sua vida dedicada às armas, ela contou-me que o meu pai tinha uma certa relutância em relação a alguns colegas de profissão. Alguns oficiais de alta patente mostravam notoriamente um comportamento diferenciado, ao assumirem uma postura de superioridade e arrogância perante os seus colegas. Referia-se àqueles que compunham o grupo restrito dos oficiais que pertenciam ao Estado-Maior do Exército, ou seja, esses militares assumiriam frequentemente um comportamento diferenciado dos demais, fosse pelo seu ar altivo e empertigado, ou pelas palavras secas e duras que desferiam aos colegas de profissão. Talvez por ainda ser uma criança, achei muito interessante e curiosa a expressão que o meu pai criou para identificar esse grupo de homens; "cagalhões engomados". Aquilo, para mim, dizia exatamente como eram esses homens, ao imaginá-los muito pequenos, atarracados, estufados e muito engomados, no sentido de extremamente ataviados, ao quererem mostrar toda a sua pompa, superioridade e circunstância.
Muitos anos mais tarde, quando regressei a Portugal após uma longa ausência no Brasil, fiz uma conexão em Madrid onde precisei de usar um voo da TAP com destino a Lisboa. O aeroporto de Madrid é gigantesco e aquela conexão com hora marcada complicou imenso o meu trajeto no aeroporto. Eu viajava sozinho e tive que correr muito para tentar tomar aquele avião com horário rigorosamente marcado. Quando cheguei no portão de embarque vi que a porta de acesso já estava fechada e percebi que todos os passageiros já deviam estar no avião. Apresentei-me gentilmente e pedi encarecidamente para que me deixassem entrar. Aguardei alguns minutos, extremamente cansado e nervoso. Por fim, comunicaram-me que alguém iria pedir autorização ao comandante do avião para que eu pudesse entrar. Obtive a permissão.
Quando entrei, cansado e ofegante, percebi que todos os olhares estavam cravados em mim. De uma forma fria, crítica e altiva, aqueles homens (não havia mulheres) todos perfilados em longas fileiras, olhavam-me com um ar de nojo e circunstância. Pareciam empresários de meia-idade que viajavam a negócios e que voltavam rapidamente para Lisboa. Sem tempo a perder. Trajavam quase todos uma camisa de colarinho enxovalhada pela viagem, calças de fazenda e os cabelos da maioria eram grisalhos e curtos. Senti uma sensação muito estranha quando passei por eles no corredor e na minha mente projetou-se repentinamente a imagem clara daquelas histórias que ouvira quando criança. Havia um elo entre aqueles homens emproados com um ar superior, e aqueles militares que o meu pai tão bem definira como "cagalhões engomados". Tinha a certeza disso. Fiquei naquele momento, seguro de estar no voo certo, rumo às terras lusitanas.